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Coluna do Sarney
José Sarney é ex-presidente da República.
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O Reino do Casuísmo

Eu, por exemplo, já escrevi algumas dezenas de textos em que o título contém a palavra “crise”.

José Sarney

Atualizada em 30/05/2023 às 15h58

Dizem que a imprensa vive de crises e dramas; o lado positivo dos acontecimentos raramente tem a mesma cobertura. Há, sem dúvida, alguma verdade nisso. Mas há também a exceção da verdade, para prevenirmos desde já o que poderia ser uma calúnia. Eu, por exemplo, já escrevi algumas dezenas de textos em que o título contém a palavra “crise”. É que o Brasil tem a crise enraizada na sua estrutura política. 

A Independência nasceu da crise do Reino Unido, que foi desunido pela vontade portuguesa de que voltássemos a ser colônia. O Império nasceu com o conflito entre duas vontades de D. Pedro: a de ser democrata e a de ser rei absoluto. Encerrou o 1º Reinado com sua expulsão para ir ser herói em Portugal. Seu filho atropelou o parlamentarismo pelo choque entre o querer ser chamado de republicano e o voluntarismo sobre a vida dos gabinetes. A República Velha começou com um golpe de Estado, teve o primeiro presidente pensando que o Congresso era seu estado maior que ele podia dispensar e o segundo governando como ditador. Viveu sem conciliar a interferência militar e a fraude eleitoral. O golpe de 1930 promoveu a crise para que o presidente permanecesse em qualquer circunstância. A República de 1946 manteve os erros de um presidencialismo inviável, em que o presidente tendia a ser expelido do poder. Pela morte, pelo impeachment, pela renúncia, pelo golpe de Estado todos o foram, com a exceção de Dutra, inerte, e de Juscelino, que se abrigou no Planalto Central. O interregno do regime militar nos fez chegar à transição para a democracia, que conduzi debaixo de pauladas, mas com a volta dos militares para os quartéis e enquanto garantia a liberdade dos constituintes para fazer a Constituição.

Não quero dizer “meninos, eu vi!”. Mas eu previ que viveríamos um estado de crises. O capítulo de direitos da Constituição é excelente. Ela tem grandes virtudes. No entanto em seu cerne há contradições graves. Ela não construiu um regime verdadeiramente presidencialista — Afonso Arinos dizia, nos seus últimos anos, que o regime americano só existia, só podia existir nos Estados Unidos, de certa forma repetindo o que Bagehot havia dito no clássico The English Constitution — nem o regime parlamentarista. Ela manteve o sistema eleitoral que tem como fundamento o corporativismo e a inexistência de partidos democráticos. Ela deu ao executivo competências legislativas, com as medidas provisórias, criatórios de jabutis que saem correndo para os interesses privados como tartaruguinhas correndo para o oceano. 

Pior foi o germe da autodestruição que plantou. Na constituição de 1824 as emendas constitucionais precisavam ser aprovadas pela próxima Câmara — nunca ficou claro o papel do Senado — e sob ela foi feita uma emenda, o Ato Adicional de 1834; a de 1892 exigia intervalo de um ano e três discussões com votos de 2/3 das duas Casas, e também só teve a Emenda de 1926; a de 1934 foi esmagada antes de ser emendada; a de 1937 não entrou em vigor; a de 1946 exigia duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas e nos deu cinco emendas, a 4, de 1961, disfarçando o golpe de Estado impondo o parlamentarismo e cassando os direitos do Presidente e a 5 derrubando o parlamentarismo; os atos institucionais, bem, foram atos anticonstitucionais. A Constituição agora exige para ser emendada apenas discussão em dois turnos, com os Regimentos — que tem valor constitucional — exigindo um interstício de cinco sessões. Mas a pressa acha que é demais e dispensa o interstício ou convoca as sessões em sucessão de minutos, eliminando o mínimo de reflexão que o Constituinte fixara. 

O resultado é termos uma Constituição instável. É termos 106 emendas constitucionais, mais seis de revisão, e que formam um volume de texto três vezes superior ao original. E inúmeras alteram o que devia ser inalterável, as Disposições Transitórias. O objetivo dessas 106 emendas, que são milhares de normas, só pode ser resolver o problema do dia: vivemos o reino do casuísmo. Nem ouso falar de mérito, pois, por maior que seja, não há maior demérito que desmoralizar o Estado de Direito. 

Enfim é mais fácil modificar a Constituição do que fazer uma medida provisória, um projeto de lei ou mesmo substituir a constituição como fez o Chico Campos em 1937 com a Polaca e em 1964 com o AI-1, ou fazer a Emenda No 1 que substituiu, em 1969, a de 1967, e vigorou até 1988, quando surgiu a Constituição atual, a mais social da História do Brasil.

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