Os homens e as instituições políticas
Os políticos serão ruins em qualquer época e em qualquer país, pois os homens tenderão, sempre, ao erro e ao vício em qualquer época e em qualquer país.
Quando da vitória espetacular de Jair Bolsonaro no pleito presidencial de 2018, sentíramos todos nós, conservadores e tradicionalistas — fossem os americanistas protestantizados, fosse a quase totalidade da classe média brasileira, fossem ainda aqueles que acalentavam a esperança de um reencontro do Brasil ideal com o Brasil real —, um frenesi até então nunca experimentado. Émulavamos, de algum modo, a esperança dos democratas de 1946, que haviam sepultado 15 anos de autoritarismo varguista, emergindo para a plenitude, suposta ou não, da democracia e da liberdade política. Poder-se-ia dizer que estávamos até mais otimistas que aquela geração dramática, logo frustrada pela vitória do Marechal Dutra. Eu mesmo escrevi alhures que o ministério de Bolsonaro, pela inegável qualidade dos seus quadros, se assemelhava a um gabinete do Império.
Não pretendo fazer a análise do governo do presidente Bolsonaro — que, ainda agora, me parece ter sido excelente, ao menos do ponto de vista da governança. Politicamente, foi péssimo. Não foi um governo de estadistas, senão de bons técnicos, administradores e alguns políticos de excelente qualidade — outros, de qualidade nenhuma.
Nem por isso será justo demonizar a figura do presidente Bolsonaro e a de seus ministros. De modo algum. Tiveram e têm, naturalmente, o seu quinhão de culpa, numa ação governativa razoavelmente bem-intencionada, no geral laboriosa e honesta — todavia, tremendamente castrada pela precariedade das instituições, pela pobreza do ambiente político e pela tragédia dos tempos. Um Tarcísio de Freitas, um Ricardo Salles, uma Tereza Cristina foram grandes ministros e grandes ministros seriam em qualquer democracia do mundo. A despeito da excelência dos quadros, faltou ao presidente Bolsonaro, acima de tudo, o cultivo das virtudes da prudência e da moderação. Faltou-lhe a sabedoria — muito própria dos estadistas — para dirimir conflitos inúteis, aplacar com habilidade a sede dos áulicos e, muito especialmente, atuar no sentido da sábia contornação da ineficiência das instituições e da mediocridade do ambiente político.
Os políticos serão ruins em qualquer época e em qualquer país, pois os homens tenderão, sempre, ao erro e ao vício em qualquer época e em qualquer país. E a natureza humana não muda, inobstante a presunção das ideologias e das utopias. Um sistema político pode, no entanto, ser emendado e aperfeiçoado — um sistema político para homens de carne e osso, débeis, tolos e egoístas, não necessariamente perversos, adaptado às condições religiosas, morais, culturais, geográficas, psicológicas do povo para o qual foi elaborado, tendo organicamente resistido ao teste do tempo.
É correto que os homens têm o poder de corromper qualquer regime político, por mais sofisticado que seja. Mas não é menos correto, por outro lado, que o comum dos homens, de si plenamente corrompíveis, se deprave, uns mais, outros menos, sob o influxo de instituições nocivas, por abstratas e inaplicáveis?
Uma das maiores inteligências que já passaram pelo Congresso Nacional, diplomata de carreira, de grande cultura e larga experiência, foi, indubitavelmente, Roberto Campos. Deputado, senador e ministro de Estado. Embaixador em Londres e Washington. Antes saquarema que luzia. Em seu livro sobre Os construtores do Império, João Camilo de Oliveira Torres talvez o identificasse como um “liberal-conservador” ou um “conservador-liberal”.
No fundo, pouco importam essas vestimentas ideológicas. Sua inteligência aguda o levava a intuir a raiz do problema. Vejamos o que nos diz sobre a inoperância de nosso sistema eleitoral: “o deputado, o senador, o prefeito, o governador e, obviamente, o presidente têm de ser eleitos, ponto de partida do qual não há escapatória. Nas eleições proporcionais de hoje, os deputados são obrigados a catar votos por todo o Estado, garimpando aqui e ali — um processo caro e tremendamente incerto, porque eleitor em geral não sabe como discriminar entre dezenas de representantes eleitos. Como é que o eleitor médio vai se lembrar de quem propôs medidas ou leis, para poder avaliar quem merece o seu voto? Um americano ou um inglês pode falar no ‘seu’ deputado: sabe exatamente quem ele elegeu e tem como cobrar respostas ao representante do ‘seu’ distrito. O alemão, com um sistema misto, tem o ‘seu’ deputado distrital e também o da lista do seu partido. E, como o regime é parlamentarista, pode cobrar de ambos. No Brasil, cobrar o quê, de quem? Mal acaba de ser eleito por um partido, o deputado ou senador se sente à vontade para mudar de partido. Não existe sanção. A eleição presidencial então é sempre um trauma violento, agravado pela percepção de que o vencedor passará a controlar a máquina pública, os mecanismos de dar ou negar favores. Gerir a coisa pública é, entre nós, um contínuo varejo. Dá para estranhar que, desde o início da República, raros tenham sido os governos que não se envolveram em conflitos com o Congresso, com riscos de descontinuidade institucional? Contra um sistema tão ruim, tanto faz se os políticos são santos ou bandidos. Num ônibus sem freios, o perigo de desastre é o mesmo para todos.” (“Repetindo o óbvio”, Folha de S. Paulo, 09.01.2000).
“Contra um sistema tão ruim, tanto faz se os políticos são santos ou bandidos. Num ônibus sem freios, o perigo de desastre é o mesmo para todos.” Eis aí um corolário da verdade política que rege o destino de todos nós. Regime que tende essencial e espontaneamente ao divisionismo e ao conflito, a democracia liberal pode — e, por vezes, deve — ser tolerada como um mal menor, sobretudo quando conciliada com a monarquia e o parlamentarismo. Mas a democracia liberal brasileira é a pior das democracias liberais. Não é nem monárquica nem parlamentarista, nem republicana nem presidencial. É uma reunião dos defeitos de todas as formas e sistemas de governo.
Os arautos do dogma da “liberdade” nos querem fazer crer da nossa inapetência congênita para a democracia. É uma bela verdade, mas por motivos outros. De rigor, entretanto, é a democracia tal como exercida entre nós — com o seu artificialismo eleitoral, as suas oligarquias partidárias e o seu governo que pouco governa e muito administra — que nos é inapetente.
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