Entrevista com Sidarta
Conversamos com um dos maiores especialistas em sonho do mundo.
Sidarta Ribeiro é um sábio, ou seja, alguém que junta inteligência brilhante com sensibilidade gigantesca e empatia pelo próximo. É um dos maiores especialistas em sonho e sono do mundo, além de renomado especialista em substâncias psicoativas, sendo reconhecido como um dos principais do Brasil.
Ele é autor de obras como o best-seller “O oráculo da noite” e o recém-lançado “Sonho manifesto”. Possui doutorado pela Universidade Rockefeller e pós-doutorado pela Universidade Duke, ambas nos Estados Unidos, e é professor e pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde lidera o laboratório de Sono, Sonhos e Memória, do Instituto do Cérebro. Seus trabalhos e contribuições já lhe renderam diversos prêmios, concedidos por entidades como a Dasa, os Ministérios da Saúde e da Integração Nacional, além do Google e do IMBES.
Trabalhamos juntos há alguns anos, cooperando principalmente em neurociência, nos desafios que o cérebro nos coloca à Humanidade, em um mundo em mudanças, em revolução, desfraldando as fronteiras do conhecimento. Uma das pesquisas é na área de comunicação entre dois cérebros que, acredito, já trabalhamos há uma década, com orientação de estudantes em nível de mestrado e doutorado e, hoje, alguns em pós doutorado, em nossos laboratórios, em São Luís ou em Natal.
Há uns cinco anos, estamos tentando fazer leituras de sonhos usando aparelhos de eletroencefalogramas e imagens do cérebro, em uma tese de doutorado em preparação. Como aprendo muito e diariamente com ele, sempre quis compartilhar com os leitores da Coluna do Kardec a sabedoria do Mestre Sidarta. Acabei o convencendo a fazer a breve entrevista abaixo, que ele resistiu, mas consegui.
Boa leitura!
Allan Kardec - Professor Sidarta, o que é um sonho?
Sidarta Ribeiro - O sonho é uma obra de arte que a gente faz ou deixa de fazer, feita de memórias e guiada pelos desejos e medos, mas não só de quem sonha, mas também sobre as pessoas com quem a gente sonha. “O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami” é um livro que eu recomendo aos seus leitores, que é da antropóloga Hanna Limulja.
Os sonhos indígenas estão muito mais próximos de revelar para que serve o sonho. No mundo urbano contemporâneo, do homem branco ou das pessoas que tentam ser brancas e viver como elas, o sonho é quase que uma heresia contra o sistema capitalista.
Allan Kardec - No livro “A queda do céu”, o Davi Kopenawa fala muito sobre sonhos, talvez porque ele esteja muito apartado dessa nossa cultura judaico-cristã ou europeia. Que tu pensas sobre isso? Qual é ideia que a gente pode aprender ou apreender a partir do livro?
Sidarta Ribeiro - Você está citando aquele que talvez seja o maior pensador brasileiro vivo, Davi Kopenawa Yanomami, xamã e líder indígena de alcance planetário. Esse livro que você está mencionando, feito com o antropólogo Bruce Albert é um guia para nós retomarmos o que podemos recuperar do passado, enquanto há tempo. Isso aí é o princípio africano chamado Sankofa.
Nunca é tarde para retomar, para regressar, para resgatar o que foi perdido. E o que nós perdemos foi a nossa conexão conosco, ou seja, do indivíduo consigo mesmo, e dos indivíduos entre si, como coletividade. A crítica do Davi Kopenawa ao sonho dos brancos é que eles sonham muito pouco, muito mal e quando sonham, sonham só com o próprio umbigo.
Allan Kardec - Essa questão talvez tenha a ver com a crítica daquele filósofo polonês Zygmunt Bauman, que chama o nosso de “mundo líquido", ou seja, superficial e que não se aprofunda no sonho. Este seria uma necessidade humana?
Sidarta Ribeiro - Os homens foram fundamentais para a gente sair das cavernas e chegar até aqui até ontem, ou seja, até 500 anos atrás. Não é, em termos históricos, ontem? Depois que começou o processo de formação do capital, misturado ao processo de formação da Ciência, os sonhos perderam prestígio na tradição europeia. E eles continuaram auxiliar a vida humana e a inclusive auxiliar a Ciência, as artes.
O sonho ajudou inclusive o mundo do capital, provendo ideias novas e estimulando a criatividade, ajudando a encontrar caminhos mesmo sem um reconhecimento por parte da cultura ocidental, em que o sonho tem esse papel.
Hoje a gente tem uma situação em que, como dizia Chico Science, computadores fazem arte e artistas fazem dinheiro. O ChatGPT chegou, os robôs chegaram e hoje em dia eles estão tomando de conta de todas as atividades que os homens praticam na vigília, que equivale a dizer todos os empregos. Isso está em curso. Já começou. Iniciou lá atrás na mecanização da agricultura, depois veio a mecanização das montadoras e agora a gente vai ver nos próximos 10 ou 20 anos a constrição do emprego pelas máquinas.
E já existem, inclusive, máquinas que sonham ou que fazem processos equivalentes ou semelhantes àqueles que acontecem no cérebro de quem sonha. Onde isso tudo vai chegar? A ficção científica já mapeou. Existem muitas opções. E eu acredito que a gente só tem chance de se resistir a esse futuro aceleradamente distópico, se a gente for capaz de se conectar com aquilo que é mais ancestral e primitivo para nossa sobrevivência no planeta, que foi importante para os nossos ancestrais mamíferos há 220 milhões de anos, que é muito tempo e a gente tem muita dificuldade de analisar tanto tempo assim.
E a gente pensar que foi essa capacidade de simular situações do futuro em potencial e de simular os desejos e medos das outras pessoas, em perspectiva com o nossos próprios desejos e medos que nos permitiu navegar o paleolítico, o neolítico, a idade do bronze, a idade antiga, idade média e chegar até aqui. E agora a gente está quase abdicando da nossa capacidade de viver em coletividade, compartilhando sonhos, construindo sonhos coletivos para deixar que as máquinas façam tudo por nós. Então, mais do que nunca é importante e necessário sonhar.
Allan Kardec - Aí vem a pergunta: como que eu, sendo uma pessoa vinculada a esse mundo líquido do Bauman, preso a esse mundo imediatista, materialista, como que eu me disciplino e me organizo para sonhar? Como abordar o teu livro “O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho” nessa perspectiva?
Sidarta Ribeiro - Vamos pensar assim: do mais biológico para o mais psicológico. A primeira coisa é você ter um número de horas de sono que você precisa. Uma pessoa adulta precisa, normalmente, alguma coisa entre 6 e 8 horas de sono. Isso depende da genética da pessoa e também da do estilo de vida e da idade. Mas se você precisa de X horas e você está tendo menos do que X, você está errado, então você tem que se respeitar profundamente. Se você sabe que você precisa de 7 horas, então você tem que garantir essas 7 horas.
Isso pode ser feito de várias maneiras diferentes, mas evidentemente tem uma implicação política, porque as pessoas de menor poder aquisitivo tem empregos piores. São essas pessoas que têm que acordar mais cedo, que têm dificuldade de transporte. Então existe uma discussão aqui que tem um impacto político! Uma sociedade mais saudável é aquela em que as pessoas podem dormir melhor e, portanto, ter melhor transporte público, menos horas de trabalho por dia.
Mesmo uma pessoa que tem tempo para dormir muitas vezes não vai dormir porque está agarrada numa tela. Então, todo mundo que quer dormir bem tem que ser capaz de desligar o celular e fechar outras telas, desligar todas as telas uma hora antes do horário que a pessoa quer dormir. Por que uma hora? porque é o tempo que demora sem estímulo visual. Esses estímulos ficam chamando a sua atenção de uma forma muito vívida, em uma sucessão de imagens muito rápidas. Esse é o mundo líquido, dinâmico, envolvendo muitas pessoas. Você está em rede. Então isso faz com que as pessoas fiquem o tempo todo esperando esse estímulo! É preciso ser capaz de desligar o estímulo, esquecer dele, até amanhã.
Fazer aquilo que nós antepassados conseguiram fazer: fecha a porta de casa, fecha a porta da caverna e vai dormir! É muito interessante fazer um exercício de auto sugestão na hora de dormir. Esperar aquela uma hora para a melatonina subir sem estímulo visual forte, sem luz azul, sobretudo, ou luz de comprimento azul. E fazer o seguinte, na hora de que um sono bater, a pessoa dizer para si mesmo: eu vou dormir, eu vou sonhar, eu vou me lembrar, eu vou relatar. Ela pode fazer isso como uma frase, repetindo a frase ou rezar, cantar ou recitar um poema. Ela pode fazer o que ela quiser, mas se ela está dizendo para si mesmo que ela quer que aconteça, aumenta muito a chance de acontecer durante o sono.
Enfim, ela dorme. Aí vem um sonho e vem outro sonho, já que à noite nós temos muitos sonhos. Quando despertar o faça, de preferência, sem despertador. Há vários ciclos de sono, entre 4 a 5 ciclos numa noite, e quando você desperta do último ciclo, de um do último episódio do sono da noite, que é mais longo, em geral, você vai lembrar de um sonho muito vívido e complexo. Aí vem o pulo do gato: o pulo do gato é ficar imóvel na cama ao despertar. E agarrar a memória, a primeira que passar, e segurar aquele fiapinho de memória e ir puxando gradativamente aqueles fios de memórias e ir reverberando aquelas memórias.
Allan Kardec - Mas qual a importância de você reverberar, de recuperar as memórias, recordar o sonho? Porque tu relatas, nos teus livros, justamente isso: que nossos ancestrais contavam os sonhos depois de despertar. E isso não acontece mais, mas a importância disso ocorre em que momento?
Sidarta Ribeiro - Para esse ciclo, se fechar, não basta você escrever o sonho ou gravar um áudio, você tem que contar ele para alguém. Só de a pessoa te escutar, ela vai te ajudar a interpretar. E qual a importância de interpretar? Isso é uma coisa que vem da psicanálise, do Freud, que, por sua vez, vem da psicologia analítica do Jung, mas, fundamentalmente, vem de muito antes, das tradições. O que eu já mencionei aqui, dos indígenas, dos aborígenes australianos e de muitos outros povos. Tem a ver com você evitar o que não quer que aconteça e tem a ver com você propiciar aquilo que quer que aconteça.
Como é que a ciência vem estudando isso? No laboratório, Robert Stickgold lá em Harvard, em 2010, mostrou que se você jogar um videogame em que tem que navegar um labirinto, em que o tempo para você sair dele é que mede o seu desempenho para, por exemplo, sair do ponto A e chegar no ponto B. Se você parar de jogar, for dormir e sonhar com o jogo, você ficará muito melhor no dia seguinte. Com o sonho, você se torna mais apto para aquela tarefa e se torna melhor naquela habilidade. Isso não acontece quando você dorme sem sonhar com ele. Também não acontece quando você fica acordado, mesmo que pensando no jogo. Essa foi a primeira demonstração de que quando você sonha com uma tarefa, com algum tipo de habilidade, você se torna mais apto para aquela tarefa.
Allan Kardec - O sonho, então, reforça a memória.
Sidarta Ribeiro - Ele reforça a memória, mas ele parece fazer muito mais do que isso. Se a gente olhar para os sonhos na História, a gente percebe que são sonhos premonitórios, que avisam sobre eventos importantes. Os sonhos, por exemplo, que antecedem a morte do Júlio César eram absolutamente premonitórios, sendo que o sonho do César era um sonho metafórico em que ele encontrava Júpiter, e se você encontrou um deus, então talvez seja porque você morreu, mas ele não entendeu isso. Mas o sonho da esposa dele, da Calpúrnia, foi uma cópia da realidade do que viria acontecer: foi um sonho sobre ele encontrando os senadores e sendo esfaqueado. Aí você pergunta, mas como é que isso é possível dentro de uma perspectiva materialista? Dentro dessa concepção, eu propus no “Oráculo da noite” de haver um oráculo probabilístico de sonho, como uma simulação das probabilidades do futuro imediato.
Allan Kardec - Eu estava recordando que nós escrevemos um artigo, tu, eu e Dráulio Araújo, que é um grande especialista em plantas ameríndias e em seus usos. Lembro também que o próprio Davi Kopenawa fala um pouco sobre elas. Como que a Cannabis e Ayahuasca, que são plantas ameríndias, ou a própria Yoga, que vem do Oriente, pode ajudar na construção dos sonhos?
Sidarta Ribeiro - Interessante você falar sobre isso porque os psicodélicos são substâncias muito poderosas, e elas vêm de plantas, fungos, animais e que foram descobertas por populações indígenas, por populações originárias, da América do sul, da América Central e outras da África. Essas populações têm um conhecimento muito profundo e muito antigo sobre a utilização dessas substâncias como medicina. Dráulio, que é nosso querido amigo e irmão, é um dos maiores especialistas no campo biomédico, sobre o efeito antidepressivo da Ayahuasca. Ele vem estendendo a as investigações dele para outras, substâncias como o DMT, da Jurema.
Existe hoje uma convergência de saberes. Dos saberes tradicionais e dos biomédicos. Existe também o perigo - e é importante a gente estar alerta - para não haver apropriação cultural. Então é importante seguir o protocolo de Nagoya no que diz respeito à repartição de benefícios, de pesquisas que envolvam conhecimento indígena ou de povos originários, em qualquer área, em particular, o caso dos psicodélicos.
É interessante ver a modificação dessa visão mais dura, e também mais patriarcal, que pode ensejar apropriações capitalistas que caracterizou a ciência no século 20. Isso está mudando com a aproximação com os psicodélicos, até porque eles promovem na expansão de consciência e possibilitam, eu diria assim, o processo de cura moral. Não quer dizer que sempre provocam, mas podem possibilitar. Isso também tem paralelo com a descoberta, a partir dos anos 60, pelo Ocidente, das contribuições orientais: Yoga, taoísmo, budismo ou confucionismo.
Allan Kardec - Perfeito, comandante, já é tarde e eu vou te deixar dormir. Ensinamentos maravilhosos. Muitíssimo obrigado!
Sidarta Ribeiro - Já!? Esse mundo está perdido! Abraços!
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