Joaquim Nabuco, monarquista
Constituirá, quem sabe, um interessante exercício de compreensão da mentalidade de um homem, ao mesmo tempo, representativo e destoante de uma época a leitura de seus pronunciamentos monárquicos feitos imediatamente após o 15 de Novembro.
Joaquim Nabuco não foi a primeira nem será a última das grandes figuras da história pátria a ser objeto de incompreensão, já não digo em seu tempo, mas pela posteridade. As motivações são muitas e variadas, a principal das quais o ter sido um dos líderes do movimento abolicionista sem que se tivesse feito também um republicano. Seria natural, no entendimento dos arautos da evolução da “história como história da liberdade” — para usar uma expressão consagrada por Benedetto Croce —, que um luminar do Partido Liberal, parlamentar de primeira grandeza, defensor acérrimo da extinção total do cativeiro, fosse um ardoroso defensor da instauração da república no Brasil.
Em momento de maior maturidade, escritor admirável, Joaquim Nabuco pontificava, seguro de si, sobre a superioridade da monarquia em face da república: “A monarquia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das formas de governo: a ausência de unidade, de permanência, de continuidade no governo, que é a superioridade para muitos da forma republicana, convertia-se em sinal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos pudessem competir desde o colégio para a primeira dignidade, passava a ser a meus olhos uma utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas.” (Minha formação. 9ª ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, Coleção Documentos Brasileiros, 1976, p. 71). E, mais adiante, na mesma página: “O Universo é a monarquia por excelência”. O mais renhido católico ultramontano e contrarrevolucionário não seria mais preciso.
Mas aí temos, como dito, o Nabuco mais maduro, experiente, primoroso estilista da língua portuguesa, abalizado historiador do Segundo Reinado. As suas memórias — Minha formação — são de 1900. A biografia de seu pai — em que se fez um poderoso intérprete da história brasileira e da sua “grande era” que foi o Império e o analista certeiro e percuciente dos mais importantes estadistas da época —, publicada em 3 tomos, tomou-lhe toda a década de 1890, sendo publicada entre 1897 e 1899. Acrescente-se ao escritor experimentado e maduro o estadista que vira no 15 de Novembro tanto o fechamento de todas as portas a uma carreira política plenamente realizada quanto uma ruptura, praticamente insanável, com as mais legítimas tradições brasileiras.
Constituirá, quem sabe, um interessante exercício de compreensão da mentalidade de um homem, ao mesmo tempo, representativo e destoante de uma época a leitura de seus pronunciamentos monárquicos feitos imediatamente após o 15 de Novembro. É onde talvez poderá ser encontrado, em sua inteireza, o Nabuco mais entranhadamente monárquico. Pondo-se, a partir de 1900, a colaborar com o regime republicano, teve naturalmente de contemporizar e se adaptar de algum modo ao novo estado de coisas; chegou, inclusive, a ser o primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos, ao tempo da presidência Rodrigues Alves. Do Nabuco monarquista, todavia, o escrito mais característico foi, muito provavelmente, pela síntese que oferece, O dever dos monarquistas, uma longa resposta à carta do Almirante Arthur Jaceguai publicada no Jornal do Commercio a 15 de setembro de 1895.
Logo de início, Nabuco inventaria a sua atuação pelo regime deposto: “Em 1890, na Resposta às Mensagens do Recife e Nazaré e na carta ao Diário do Commercio: — Por que continuo monarquista; em 1891, no Agradecimento aos Pernambucanos e na colaboração para o Jornal do Brasil intitulada Ilusões Republicanas; em 1893, no discurso que pronunciei na Quermesse da Cruz Vermelha; em 1895, em Balmaceda e na Intervenção Estrangeira durante a Revolta, sem recordar a nossa campanha de 1888 e 1889, quando a escravidão respondeu ao ato de 13 de Maio desfraldando a bandeira da República, manifestei do melhor modo que me era possível o meu pensamento sobre a adaptação da forma republicana ao nosso país. Além daqueles fragmentos de opinião, há dois anos que me ocupo em reconstruir, sob o título — Um Estadista do Império, J. Th. Nabuco de Araújo, Sua Vida, Suas Opiniões, Sua Época (1813-1878), a individualidade de um dos vultos do antigo regímen com uma perspectiva do reinado de D. Pedro II, esboço que continuarei, se puder levar a efeito um plano talvez demasiado ambicioso, com a história do Movimento Abolicionista (1879-1888), à qual pertence o fim da grande era brasileira.” (O dever dos monarquistas — carta ao Almirante Jaceguai. Rio de Janeiro: Typografia Leuzinger, 1895, pp. 05-6).
Curiosamente, as convicções monárquicas de Joaquim Nabuco, mais de meio século depois, sofrem crítica demolidora de José Pedro Galvão de Sousa, o jurista e filósofo político que se fez continuador das investigações de Alberto Torres e Oliveira Vianna em torno do problema essencialmente hispano-americano do apriorismo político. Vejamos o que nos diz o mestre paulista: “O que conta Joaquim Nabuco, nas páginas de Minha Formação, é bastante significativo. Na sua mocidade, o brilhante tribuno vacilou em suas convicções monárquicas. Esteve quase a aderir à república. O que o deteve — não foi o estudo da nossa história, não foram pesquisas em torno da sociologia brasileira, não foi uma reflexão sobre a política do Império, que ele tão admiravelmente descrevia nos três volumes de sua obra principal. Foi simplesmente a leitura de um autor inglês, Bagehot, descrevendo o funcionamento da monarquia constitucional na Grã-Bretanha e colocando diante do leitor extasiado o espetáculo de um regime no qual se refletiam horas, os minutos e os segundos da opinião pública.” (Raízes históricas da crise política brasileira. Petrópolis: Vozes, 1965, pp. 64-5).
Se, em suas memórias, ao analisar tanto o regime monárquico em abstrato quanto a nossa experiência imperial, Nabuco lança mão da ciência política em uma clave fundamentalmente liberal, é n’ O dever dos monarquistas, talvez por se tratar de escrito destinado ao confronto direto de ideias, que o grande pernambucano elege a história mesma como a baliza incontornável de seu ideário, que o aproxima sobremaneira de uma postura tradicionalista. E tal eleição acaba se tornando uma réplica, embora incompleta e involuntária, às imputações — justas e corretas — de apriorismo político.
Contra as inventivas do Almirante Jaceguai, para quem — em argumento falacioso, largamente usado pelos republicanos da época — não caberia uma monarquia nas Américas, Nabuco baseia toda a sua argumentação na tradição e na experiência: “Tenho por certo que a função benéfica da monarquia no Brasil foi esta: Descobrimento, conquista, povoamento, cristianização, edificação, plantio, organização, defesa do litoral, expulsão do estrangeiro, unificação e conservação do todo territorial; administração, estabilidade, ordem perfeita no Interior; Independência, unidade política, sistema parlamentar, sentimento da liberdade, altivez do caráter brasileiro, inviolabilidade da imprensa, força das oposições, direito das minorias; tirocínio, aptidão, moralidade administrativa; vocação política desinteressada; crédito, reputação, prestígio exterior; brandura e suavidade de costumes públicos, igualdade civil das raças, extinção pacífica da escravidão; glória militar, renúncia do direito de conquista, arbitramento internacional; cultura literária e científica a mais forte da América Latina; por último, — como o ideal realizado da democracia antiga, o governo do melhor homem — um reinado Pericleiano de meio século. (...) Pretender que uma instituição que teve todo esse papel em nossa história não tinha raízes no país é pretender que o criador não tem raízes na criatura.” (O dever dos monarquistas — carta ao Almirante Jaceguai. Rio de Janeiro: Typografia Leuzinger, 1895, pp. 14-5).
Mas é quando tece considerações as mais reveladoras acerca da mentalidade e da psicologia do brasileiro que o grande escritor de Um estadista do Império chega a quase que ensaiar um verdadeiro programa monárquico, de uma monarquia ainda possivelmente ancorada nos preconceitos ideológicos de seu tempo, mas já destinada, em potência, a um tipo bem brasileiro de cidadão — uma monarquia que não é mais uma simples forma organizativa de poder, construída para todos os povos e para nenhum
Vejamos o quanto de verdade há nestas palavras: “Já antes dos quarenta anos, o Brasileiro começa a inclinar a sua opinião diante das dos jovens de quinze a vinte e cinco. A abdicação dos pais nos filhos, da idade madura na adolescência, é um fenômeno exclusivamente nosso. (...). O resultado é uma prematuridade abortiva em todo o campo da inteligência, pelo que o talento nacional, que é incontestável, pronto, brilhante e imaginoso, está condenado a produzir obras sem fundo (...). Será difícil a um estudante nosso de mérito servir-se a primeira vez do microscópio sem logo descobrir um novo organismo que os sábios estejam procurando em vão, há anos, nos diversos laboratórios da Europa. A pressa é uma incapacidade para a ciência, como para a arte. (...). Qualquer jovem oficial que mandemos aos estaleiros da Europa sente-se com a capacidade de resolver uma dúvida entre dois grandes arquitetos navais. Tudo isso revela de certo uma qualidade — a iniciativa, que, corrigida e completada pela reflexão, é a primeira das qualidades do espírito, mas que movida pela imaginação somente é quase infantil. (...). Eu receio muito o dia em que tivermos um cardeal nosso. O representante no Sacro Colégio da nossa impulsiva mentalidade, se o Conclave não ceder às suas vistas superiores, ameaçará vir para a imprensa contar as irregularidades da apuração das cédulas, perturbando a eleição que há dois mil anos se faz tranquilamente do sucessor de S. Pedro. Se por acaso um nosso patrício recebesse um dia a tiara, então, sem blasfêmia, nem o Espírito Santo conseguiria contê-lo na reforma geral da Igreja. Certamente com papas brasileiros a infalibilidade não teria levado tantos séculos para ser proclamada dogma. (...). Nenhum terreno pode ser mais próprio do que esse para a cultura da anarquia.” (op. cit., pp. 18-20).
Depois da leitura atenta desse arrazoado a respeito de certas tendências da nossa índole, é forçoso concluir que sobre uma tal “cultura da anarquia” é que a monarquia constituiria, como constituiu no passado, um elemento civilizador absolutamente necessário, com uma dinastia intimamente ligada, por laços de sangue e de temperamento, à nação e com interesses em comum aos do povo, sobre o qual possui o direito histórico de reinar — e “como seu remédio natural” (op. cit., p. 22).
A grande lição de resiliência, diríamos mesmo de brasilidade, de Joaquim Nabuco, não obstante os equívocos e incompreensões muito próprios de sua época, é, ainda, um ato de fé no futuro e nos destinos da nacionalidade, como quando entrelaça de vez a sorte do Brasil à monarquia — “o Brasil, quanto mais civilizado, mais tenderá para a monarquia; quanto mais bárbaro, mais se desinteressará dela.” (op. cit., p. 28).
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