(Divulgação)
COLUNA
Antenor Bogéa
Maranhense, diplomata e músico.
Antenor Bogéa

O humanismo de Albert Camus

Há mais de oito décadas, em maio de 1937, Albert Camus, um dos mais importantes escritores franceses do século XX, publicava seu primeiro livro, O Direito e o Avesso.

Antenor Bogéa

Atualizada em 02/05/2023 às 23h50

Há mais de oito décadas, em maio de 1937, Albert Camus, um dos mais importantes escritores franceses do século XX, publicava seu primeiro livro, O Direito e o Avesso, reunindo cinco ensaios nos quais já transparecia sua preocupação com a sensibilidade do Mediterrâneo, com o problema do absurdo e a consciência da inevitabilidade da morte. O sol, o mar e a sensualidade são mostrados nesses escritos como o centro de uma mitologia pessoal que representou um papel importante na formação de sua sensibilidade e no seu desenvolvimento intelectual. Se tomado como factuais, esses ensaios ajudam a dissipar névoas em torno do homem Camus, que se admirava de aparentar uma personalidade sombria e ascética, atributos resultantes, sem dúvida, da trágica dimensão de sua obra. Pouco antes de morrer, em 1960, reafirmou seu prodigioso apetite por tudo que a vida oferecia, uma herança, afirmava ele, da influência de elementos felizes que fizera de seus anos de formação um idílio quase perfeito.  Na infância, a pobreza foi recompensada pela alegria do companheirismo e pelo esplendor do sol argelino. “Para mim, antes de tudo, ela nunca foi uma desgraça, foi uma pobreza radiante de luz”. O paganismo solar nos ensaios de seu primeiro livro subentende a tragédia como o aspecto complementar da alegria. Uma vida de alegria, quando confrontada pela inevitabilidade da morte, aparece até mais absurda que uma vida de melancolia.

A permanência da paisagem do Mediterrâneo, do sol e do mar enfatiza a brevidade da vida humana. Os homens mediterrâneos, dizia Camus, são dotados de um profundo sentido da tragédia da existência. Nascido na Argélia, de pai francês e mãe espanhola, Albert Camus atingiu a maturidade na época em que Adolf Hitler chegou ao poder. Sua obra expressa, pois, o horror de viver durante a ascensão do nazismo e, também, o desejo de estabelecer uma vida provida de sentido em um mundo de guerras e conquistas fúteis. Incapaz de ignorar a catástrofe da vida moderna, Camus desenvolveu dois conceitos associados – o absurdo e a revolta – em uma significante filosofia de vida pessoal. Em seu livro de idéias, O Mito de Sísifo, ele define o absurdo como um sentimento que brota da comparação entre um estado de fato e uma determinada realidade, entre uma ação e um mundo que a transcende, como um divórcio, uma relação de não-conformidade entre o homem e o universo, um sentimento de desilusão experimentado diante da incoerência entre o que almejamos e aquilo que o mundo nos faz provar. 

Camus inicia o livro declarando ser o suicídio o único problema filosófico verdadeiramente importante. Suicidar-se é reconhecer que não vale a pena viver. O homem não age com lógica no ato do suicídio, embora acredite no absurdo de sua vida. Ao perceber que sua existência é absurda, ele vislumbra duas soluções para o problema: suicídio ou vida na absurdidade. Se escolher a vida, ele deve aceitar o absurdo. Já o suicídio não responde ao absurdo: simplesmente destrói uma das partes. Camus considera duas alternativas ao suicídio: o suicídio filosófico e a revolta. O primeiro seria uma atitude de renúncia, uma forma de se conformar à desordem do mundo. Já a segunda, a revolta absurda, é a aceitação plena da verdade de sua existência. Continuadamente, tentado pelas duas formas de suicídio, ele deve viver com a certeza de que nada é certo, exceto o absurdo. Filósofo da experiência moral, pregador de um humanismo inspirado pelo profundo sentido do sofrimento e pela necessidade de comunhão, amizade e amor, Camus lutou por um humanismo como forma de dar sentido à vida e de enfrentar a irracionalidade. Propondo uma nova direção ao problema da ansiedade e do sofrimento, ele faz do absurdo uma fonte de direção, esperança e otimismo para uma compreensão universal em um mundo sem referências. Filósofos existencialistas como Heidegger e Kierkegaard, ao concluírem que o homem vive em um mundo irracional, propunham uma linha de ação que, segundo Camus, representava uma simples forma de evasão ao problema do absurdo: “Por meio de um raciocínio singular partindo do absurdo sobre os escombros da razão, em um mundo fechado e limitado ao homem, eles divinizam o que o aniquila e encontram uma razão para ter esperança naquilo de que são privados”.  Camus questiona nos existencialistas cristãos seu sentimento de esperança e sua atitude diante dos problemas do absurdo, que, para eles, continha uma solução evidente – as leis de um Deus todo-poderoso regem este universo onde a morte é o começo de uma verdadeira existência. Para Camus, é inútil ter esperança em outra vida onde o homem será recompensado pelos sofrimentos terrestres. Camus questiona também os existencialistas ateus como Jean-Paul Sartre, que admitem o homem como mestre de seu destino e o único ser capaz de superar o absurdo através da liberdade de escolha e de ação. Se, para Sartre, o homem pode combater e superar o absurdo exercendo sua vontade a cada momento de esperança, para Camus, o homem que experimenta o sentimento do absurdo liga-se a ele para sempre e jamais poderá superá-lo ou resolvê-lo, pois o absurdo é um confronto perpétuo entre o homem e o universo. Baseado na escolha e no exercício da vontade, o existencialismo pressupõe uma liberdade que, para Camus, não existe.

Já na Grécia Antiga, para poeta épico Homero, Sísifo foi o mais sábio e prudente dos mortais. Dizia a mitologia grega que um dia Sísifo acorrentou a morte. Então Hades, o deus dos infernos e dos mortos, não podendo suportar o espetáculo de seu império deserto e silencioso, despachou Ares, o deus da guerra, para libertar a morte das mãos de Sísifo. Outra versão conta que Zeus raptou a filha de Asopo, rei dos rios, que foi procurá-la em Corintho, onde reinava Sísifo. Este, sabendo do ocorrido, revelaria tudo se Asopo fornecesse água para a cidade de Corintho, o que foi acordado. Tendo escapado da vingança de Asopo, Zeus pediu ao irmão Hades para punir Sísifo nos infernos por contar segredos dos deuses. Sísifo foi então condenado a rolar uma imensa pedra até o topo de uma montanha, de onde a mesma resvalava encosta abaixo, por seu próprio peso. Ele a rolava novamente até o topo e a pedra rolava monte abaixo. Assim, eternamente. Com toda razão, os deuses imaginavam não haver castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Camus apresenta Sísifo como o herói do absurdo, que despreza os deuses, ama a vida e odeia a morte.

Imaginemos o esforço do corpo tenso, movendo a enorme pedra para cima, por uma encosta mil vezes recomeçada. Ao cabo do longo esforço medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem dimensão, o topo é atingido. Mas logo Sísifo vê a pedra resvalar em direção ao mundo inferior. Sísifo desce em direção à pedra. É durante esse percurso, nos diz Camus, que Sísifo nos interessa. Esta hora, como uma respiração, é a hora da consciência. Quando deixa o topo e desce, Sísifo é superior a seu destino, é mais forte que sua pedra. O mito é trágico porque seu herói é consciente. Não haveria sofrimento se a cada passo a esperança o sustentasse. Sísifo, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável. A clarividência que deveria provocar seu tormento consome, de uma só vez, sua vitória. Não há destino que não possa ser vencido pelo desprezo. Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e move as pedras. Este universo, doravante sem mestre, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão desta pedra, cada brilho mineral desta montanha cheia de noite forma um mundo somente para ele. A luta em direção ao topo é suficiente para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Também em sua obra de ficção, Camus conserva a linguagem clara e lúcida de seus ensaios, uma linguagem voltada para o respeito à dignidade humana, como exemplificam os romances O Estrangeiro e A Peste, a peça O Mal-entendido e os contos que formam o livro O Exílio e o Reino. 

O Estrangeiro. Meursault, personagem central do romance, recebe a notícia da morte da mãe, que vivia num asilo. Ele a enterra sem lágrimas, com uma espécie de indiferença. No dia seguinte, vai à praia, onde conhece Marie, com quem vai em seguida ao cinema; mais tarde dormem juntos. Depois se envolve com Raymond, um indivíduo brigão que vive metido em encrencas. No domingo seguinte, Raymond convida Meursault e Marie a passarem o dia na casa de um amigo, à beira mar. Nos arredores da casa, encontram dois árabes que vinham seguindo Raymond para vingar-se de uma jovem árabe que ele havia castigado. Os homens brigam na praia e Raymond é ferido. Um pouco mais tarde, Meursault reencontra os árabes. Levando consigo o revólver de Raymond, ofuscado pelo sol e a ponto de cair de insolação, ele dispara quatro tiros, sem razão, contra um dos árabes. Meursault é preso. Ao longo do julgamento, o promotor argumenta que seu comportamento fora sempre o de um criminoso. O júri o condena à morte.  Ele recusa os consolos da religião porque não crê em Deus. Mas no último instante de vida, sua revolta apaziguada, ele encontra na aceitação do seu destino absurdo uma espécie de paz. O Estrangeiro retrata uma sociedade fria, que julga e executa um homem, que pune um crime com um outro. Meursault quebrou a ordem social e moral quando matou um homem. Para Camus, no entanto, nenhuma execução torna a sociedade mais justa ou mais harmoniosa. Meursault foi condenado por não ter chorado durante o velório da mãe; por não ter querido vê-la no caixão; por ter fumado e bebido café diante do corpo; por ter ido ao cinema; enfim, porque ele não era um homem como os demais, porque “no dia seguinte à morte da mãe se entregou à farra mais vergonhosa, matou por razões fúteis, para liquidar uma questão de costumes inqualificável”. O promotor discorre sobre os fatos que levaram Meursault a matar com pleno conhecimento de causa e acrescenta que “esta mesma corte vai julgar amanhã o mais abominável dos crimes, o assassinato de um pai”.  Por meio de uma lógica irracional, ele enfatiza que “um homem que havia moralmente matado a própria mãe se retraía da sociedade dos homens como aquele que levantara uma mão assassina sobre o autor de seus dias”. Deste modo, o promotor compromete o julgamento associando-o ao crime do parricida: “Os senhores não acharão meu pensamento audacioso demais se eu lhes disser que o homem sentado ali naquele banco é também culpado pelo crime que esta corte vai julgar amanhã. Consequentemente, ele deve ser punido também por esse crime”.

Assim, pela visão limitada que tem do homem comum, a sociedade se priva de ser humanista e se compromete por uma ação nociva, como demonstra o julgamento de Meursault. Ao recusar a “estrangeidade” de um criminoso, a sociedade esquece o homem que ele é, tornando-se cúmplice da irracionalidade deste universo fechado e limitado ao homem.

A Peste. Na cidade argelina de Oran, isolada por uma epidemia, os homens vivem e morrem tentando combater a peste. A luta contra a epidemia, o sofrimento do exílio, o horror da agonia e da morte e sobretudo a amizade entre os homens que se esforçam para exorcizar a peste formam o enredo deste romance no qual Camus retoma as idéias de amor e fraternidade que se tornam importantes na medida em que dão ao homem o meio de enfrentar solidariamente o flagelo que a todos açoita. Rieux, o médico ateu, e Paneloux, o padre, mostram que a solidariedade na luta contra o mal está acima de suas convicções pessoais. Para Paneloux, a religião pode levar o homem à dúvida. Na pregação logo após ser decretado o estado de peste, ele se refere ao flagelo como uma punição: “meus irmãos, vocês estão na desgraça; vocês a mereceram. É preciso arrepender-se, cair de joelhos e orar. É preciso aceitar o sofrimento, pois ele manifesta a vontade divina, que transforma o mal em bem”.  Um dia, porém, o padre assiste à agonia de uma criança se debatendo contra a peste. Ao ver aquela boca infantil dilacerada com os gritos de todas as idades, o padre sofre uma tremenda transformação. Não há explicação para semelhante escândalo; a dor infligida aos inocentes não pode justificar qualquer vontade divina. Através da solidariedade, Camus sustenta a importância da luta contra o mal. Na simpatia, no amor e na compreensão pelos que sofrem, o homem se identifica com seus semelhantes. “Se nada é dado aos homens e o pouco que eles conquistam é pago com mortes injustas, somente o homem pode decidir ser maior do que sua condição. E se sua condição é injusta, ele tem uma forma de superá-la: é ser justo ele mesmo”.  Esta crônica da peste é um grande exemplo de solidariedade. Rieux, no trabalho, encontra o sentido da vida. Paneloux, na segunda pregação, substitui o “vocês” por “nós” e, transformado pela experiência patética da morte da criança, diz que não devemos ajoelhar e nos entregar: “É preciso seguir em frente, um pouco às cegas, e tentar fazer o bem, pois o amor de Deus é um amor difícil”.  Outro personagem de A Peste, Rambert, o jornalista, amedrontado e distante, mostra que o sentimento é mais importante que o heroísmo. Após longo combate, a peste será vencida, as portas da cidade serão reabertas e a multidão, livre do flagelo, se entregará à alegria. Mas não há uma vitória definitiva e talvez chegue o dia em que para infelicidade dos homens a peste desperte seus ratos e os mande morrer em uma cidade feliz. A idéia dessa constante confrontação entre o homem e seu destino está também presente na obra dramática de Albert Camus, especialmente na peça O Mal-entendido, que, como diz o nome, é um equívoco atroz: “Os homens morrem e não são felizes”.  

O Mal-entendido. Um homem deixa seu vilarejo para ganhar a vida em outro país. Depois de vinte e cinco anos, retorna rico, com mulher e filho. Sua mãe era dona de um pequeno hotel, que administrava com a filha. Para surpreendê-las, o homem deixou a mulher e o filho em outra hospedaria e foi para o hotel da mãe e da irmã, que não o reconheceram quando entrou. Para fazer uma brincadeira, pediu um quarto e mostrou seu dinheiro. À noite, a mãe e a irmã o mataram para roubar e jogaram o corpo no rio. Na manhã seguinte, a esposa do viajante veio procurá-lo no hotel e, sem saber, revelou a identidade do viajante.  Desesperadas, a mãe se enforcou e a irmã se jogou num poço. Esta peça é uma destas raras obras onde o homem e a natureza são fundidos na sua própria obscuridade. Aqui, Camus cria uma atmosfera propícia a mal-entendidos mórbidos, a ação se desenvolvendo em um albergue de uma cidade chuvosa, em um país de nuvens e sombras, onde o céu não tem horizonte.  Jan, o viajante, retorna “para trazer fortuna e, se possível, felicidade”. Martha, a irmã, que sonhou sempre em trocar essa terra de sombras por um país de sol “onde a primavera nos entra pela garganta e as flores desabrocham aos milhares sobre os muros brancos”, ilustra o desespero e a infelicidade daqueles que tentaram realizar seu sonho de felicidade por meio de ações desumanas e cruéis. Ao matar viajantes endinheirados que se hospedavam em seu hotel, ela acreditava ser possível juntar o dinheiro que a levaria ao país de seus sonhos. Mas o destino caprichoso mostra-lhe que ela está “longe demais daquilo que ama, e sua distância não tem jeito”. O autor faz da peça um equívoco de identidades e de aspirações. Camus não fala simplesmente de um viajante não reconhecido, mas de um viajante que omitiu fazer-se reconhecer. Fala também da mãe e da irmã que reconheceram, com rapidez, a esperança no dinheiro do viajante, mas que jamais reconheceriam a face de uma possível felicidade. O assassinato de Jan – ato gratuito final das duas mulheres – serve apenas para acelerar a agonia que lhes era destinada desde o início. O Mal-entendido nos choca com o contraste entre a cegueira dos personagens nas suas relações recíprocas e a lucidez que eles demonstram em relação a seus próprios sentimentos. O mal-entendido é apenas uma fatalidade precipitada e revelada pelo uso que o homem faz de sua falsa liberdade.

No seu último livro, O Exílio e o Reino, Camus explora a idéia de um mal-entendido interior e universal que exila o homem de seu reino. Nos contos que compõem essa obra, o autor retoma a idéia de capturar a diversidade e os espinhos da vida.

O Exílio e o Reino. “A mulher adúltera” é a primeira das histórias. Janine acompanha o marido em uma viagem ao norte da África. O encontro com os árabes e o deserto despertam-lhe a consciência da esterilidade de sua vida, parecida com aquela terra árida onde se arrastavam, mergulhados na pobreza, homens que nada possuíam, mas que a ninguém serviam, livres senhores de um estranho reino. Uma noite, no terraço, com todo o deserto diante de si, Janine toma consciência de uma vida maior, prometida inutilmente pelo espaço das areias e pela giração das estrelas. Janine se torna adúltera, não no sentido moral, mas por desejar um reino para fugir da longa angústia de viver e de morrer. Incapaz de se afastar do vazio aberto diante dela, ao longe, naquele lugar onde o céu e a terra se fundem numa linha pura, pareceu-lhe que alguma coisa a esperava, algo que ela havia ignorado até aquele dia e que, no entanto, não deixava de lhe fazer falta. De volta ao hotel, ela chora com todas as lágrimas. Ela retorna ao reino da solidão ao lado do marido maçante, complacente, que não a ama e que a fará viver sempre à sombra de sua servidão, no meio do seu próprio exílio.

O segundo conto, “O renegado”, é a história de horror de um jovem missionário católico que, enviado para converter uma tribo de beduínos de uma estranha cidade de sal, se torna prisioneiro dos pagãos, passando a sofrer crueldades indescritíveis. A língua arrancada, meio enlouquecido pelas torturas, ele se revolta contra o “Senhor da doçura” e se entrega de corpo e alma ao mal. Renegando sua própria história e dominado pelo ódio dos homens, o padre consegue manter-se vivo à espera do novo missionário que ele planeja matar: “Tenho contas a acertar com ele e com meus mestres que me enganaram”. Como Martha, na peça O Mal-entendido, o renegado jamais reconhece o verdadeiro reino porque enganou a si mesmo, por sua vaidade, por seu desejo de ser maior que seus mestres. Seu sonho de grandeza é mais forte que a realidade de sua condição. Ele sonhava em subjugar os mais bárbaros como um “sol poderoso”. O missionário, explica a crítica literária franco-americana Germaine Brée, se transforma na vítima de uma terrível queda; na fonte de seu desastre, existe o mesmo  desejo de Prometeu de igualar-se aos deuses, o hubris sempre seguido, no cosmos grego, de uma mudança e da aparição terrível de uma Nêmesis em forma de esfinge.

Outro conto, “O hóspede”, narra a história de um professor que, em uma longínqua escola, desconhece o sentimento do exílio em um mundo de montanhas e desertos. Um dia, dois viajantes, no meio de uma tempestade, refugiam-se na escola: um policial e seu prisioneiro, um criminoso árabe. Tendo o policial outras obrigações, as autoridades determinaram que o professor conduzisse o prisioneiro até o vilarejo mais próximo. Dividido entre o desgosto pelo crime praticado pelo árabe e sua aversão pelo fato de ter que entregar o homem à lei, o professor Daru parte com o prisioneiro e em determinado lugar, onde a estrada se bifurca, o deixa livre para que escolha entre o caminho da prisão e o da liberdade. Para sua surpresa, o árabe escolhe a prisão. De volta à escola, Daru encontra no quadro-negro uma ameaça rabiscada por um parente do árabe. Camus utiliza com frequência a condição dos árabes exilados em seu próprio país como uma forma de crítica à política do colonialismo. Em “O hóspede”, Camus fala de um árabe desamparado, humilhado, que apesar do crime, não perdeu a condição de um ser humano. E é essa a condição do homem humilhado que recorda ao professor uma espécie de fraternidade: “Os homens que partilham os mesmos quartos, soldados ou prisioneiros, contraem um estranho laço como se se reunissem cada noite, acima de suas diferenças, na velha comunidade do sonho e da fadiga”. Por isso, o professor oferece ao árabe condições de escapar. Entregá-lo seria contrário à honra. Só o fato de imaginar tal coisa o enchia de humilhação. Por outro lado, a mensagem deixada no quadro-negro faz Daru compreender mais profundamente seu exílio em um reino enfim ameaçado. Daru descobre a solidão naquele planalto que ele acreditava ser seu.

“A pedra que cresce” é outro conto de O Exílio e o Reino. A figura central do conto é D’Arrast, engenheiro francês que vem ao Brasil construir uma represa numa cidade do interior, onde faz amizade com um velho cozinheiro de navio que, após escapar da morte no mar, fez a promessa de acompanhar uma procissão levando sobre a cabeça uma pesada pedra. Tendo passado a noite anterior dançando em um terreiro de macumba, o velho cozinheiro cai sob o peso da pedra na hora de pagar a promessa. D’Arrast , tomando o lugar do amigo, põe a pedra nos ombros e a leva, não pra a igreja, mas para a cabana do velho marinheiro. Na casa, ele a joga no fogo, num gesto de solidariedade com os proscritos e os miseráveis. O ato de carregar a pedra rompe a barreira de diferenças e o faz solidário. Ao carregá-la, “de olhos fechados, louva alegremente sua própria força; e mais uma vez, louva a vida que recomeça”.

Estas histórias mostram o espetáculo do sofrimento, da humilhação e do sentimento de solidão do homem. São relatos do homem exilado na tentativa de entrar no reino que a história lhe negou. Camus nunca é fácil, superficial ou irresponsável. Sua inteligência e sua integridade como artista dão à sua obra o ar portentoso e a compulsiva expressão de verdade que ele transmite. Sem ser didático, ele fala de uma forma de engajamento. Se “o mal que existe no mundo vem quase sempre da ignorância”, se há nos homens “mais coisas a admirar do que a condenar”, é preciso combater a ignorância, é preciso acentuar as coisas a admirar, é preciso, sobretudo, que o homem salve a si mesmo pela decisão de ser mais forte que sua condição. É inútil alimentar a esperança de um futuro melhor a menos que a profundeza da consciência humana seja transformada pela fraternidade, diz L. Barral. A menos que os homens se amem profundamente e sem reservas, sua ciência e sua tecnologia de nada servem, sua arte não tem sentido e sua sabedoria é estéril. Mais do que nunca, o homem reconhece a necessidade desesperada de um engajamento pleno e absoluto no amor, não importa a que preço. É inútil procurar a justiça onde não há fraternidade. Injustiças nem sempre podem ser evitadas: valores não são fáceis de ensinar, mas a fraternidade pode se abrir e tornar-se ela mesma uma filosofia de vida inspirada pela justiça e sustentada pelo amor.

Não é mais possível ficar indiferente, diz Camus. O homem tem de levantar a voz contra o mal. Ele é chamado a ajudar seus semelhantes num mundo de sofrimento para todos. E Albert Camus acreditava que este mundo não tem um sentido superior, mas que algo no mundo tem sentido e este algo é o próprio homem, porque ele é o único ser que pode exigi-lo. 

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