Almas Mortas
Resumidamente, a magistral obra conta a história de Tchítchicov, um aspirante a golpista, que se mudou para uma pequena cidade, no interior da Rússia, e, passando-se por um cavalheiro e após conquistar a todos do local, iniciou a execução do plano.
Em junho de 2022, Luciana Genro, deputada estadual pelo PSOL, se posicionou contra um projeto de lei que tornava obrigatório o ensino de educação financeira nas escolas públicas e privadas do estado do Rio Grande do Sul. A nobre deputada qualificou como “ridícula” a proposta, por entender que o problema das famílias dos alunos “não é de educação financeira, é de falta de dinheiro”.
Inicio dizendo que discordo da posição da deputada, e vou me valer de um clássico da literatura mundial, para tentar provar o seu equívoco. A obra à qual me refiro é “Almas Mortas”, escrita por Nicolai Gógol.
Resumidamente, a magistral obra conta a história de Tchítchicov, um aspirante a golpista, que se mudou para uma pequena cidade, no interior da Rússia, e, passando-se por um cavalheiro e após conquistar a todos do local, iniciou a execução do plano. E que plano era esse?
Adquirir, de graça, almas mortas. Isso mesmo, almas mortas. Explico o porquê: até o século XIX, quando vigorava na Rússia o sistema feudal de exploração das terras, os mujiques (servos) contavam como propriedade, de modo que, em função deles, os donos das terras pagavam impostos.
E essa obrigação, vale dizer, perdurava mesmo após a morte desses servos. A exclusão dos mortos, como propriedade tributável, só acontecia uma vez por ano, por ocasião do recadastramento estatal.
Pois bem, nosso “herói sem caráter”, Tchítchicov, inventando as maiores desculpas, propunha aos donos que repassassem a propriedade dessas almas e ficassem desonerados de pagar os tributos. De fato, ele pretendia usá-las como garantia na aquisição de empréstimos, já que eram propriedades e o banqueiro não tinha como saber que eram apenas almas. Esse é o resumo da obra, mas para o propósito do presente artigo, quero falar de três personagens que aparecem na trama, como coadjuvantes: Tentiêtnikov, Pietukh e Constantin Fiódorivitch.
Tentiêtnikov, homem muito rico e herdeiro de terras inigualáveis pela localização, relevo e clima propícios para plantar e colher com fartura, após experiências decepcionantes na academia e na burocracia estatal, resolveu assumir a administração das suas terras. E o fez com ânimo redobrado, ao concluir que aquilo lá era um paraíso e que, por ser instruído e culto, tinha de disseminar o bem entre os servos e fazer a região progredir. Começou a implantar, portanto, as ideias que trariam o bem e a fartura para todos, como diminuição da jornada de trabalho, distribuição de vodca e presença constante na lavoura e nas demais atividades, para mostrar empatia. Resultado prático: as suas plantações brotavam minguadas e de forma tardia, enquanto na terra arada pelos servos, para seus próprios sustentos, o milho, o trigo e a cevada eram melhores e a colheita começava bem antes, o que o levou a concluir “que os servos o estavam simplesmente enganando”. Com isso, perdeu o gosto pela empreita e pela vida. Dormia muito, lia e escrevia, se sustentando do pouco que ainda conseguia amealhar de renda da terra.
Pietukh, também proprietário de terras férteis, por seu turno, nunca fez nenhum esforço de ver a terra dar frutos e progredir. Consumia tudo que podia e, sem pensar no amanhã, hipotecou a fazenda para ter renda e deixou a administração entregue a terceiros. Seu plano era morar na cidade, em Moscou, para curtir a vida. Por gastar demais, as economias já estavam no final e só poderia realizar o sonho de morar na capital russa se vendesse a propriedade. Contudo, havia um porém: se vendesse a propriedade, mesmo já tendo quase exaurido as riquezas da terra, como sobreviveria em Moscou?
Por fim, temos Constantin Fiódorivitch, que só fazia crescer em propriedades e riqueza. Mas ele não crescia e enricava sozinho, pois todos que trabalhavam com ele, na condição de servos, se tornavam prósperos. O homem trabalhava duro, ensinava como fazer, poupava o que tinha de poupar, gastava o que tinha de gastar, era incapaz de gastar com coisas supérfluas, apesar de manter um excelente padrão de vida. Havia procissão de servos na sua porta implorando para trabalhar com ele. A vila da sua propriedade era a que disponibilizava as melhores casas e escola para os mujiques e seus filhos, não havia briga entre os moradores e os ganhos auferidos eram convertidos em novas melhorias.
Escrevi tudo isso não com a intenção de resumir a obra, mas, sim, para destacar a importância da educação financeira, ontem, hoje e sempre.
Quer queiramos ou não, ninguém consegue viver do simples desejo próprio, ou de alguns, de que a pobreza deixe de existir; de cantar a música Imagine de John Lennon; e soltar pombas brancas pela paz. No fim do mês, como o nascer do sol a cada dia, os boletos chegam, e se não forem pagos faltará crédito e, talvez, haja penhora de bens pela inadimplência. Por tudo isso, saber fazer conta, para administrar o que se ganha, mesmo que pouco, é indispensável.
Saber que a fatura do cartão de crédito deve ser paga e que se pagar apenas o valor mínimo os juros futuros são quase impagáveis, é algo necessário. Saber que, entre um sapato novo, estando o velho ainda utilizável, e o pagamento da escola do filho ou a aquisição de alimentos, há que prevalecer as últimas opções, porque mais importantes. Saber que, nem tudo que quero posso, porque o salário recebido não suporta a viagem que gostaria de fazer com a família, ou a mudança para um imóvel mais confortável, ou, ainda, o carro bacana que vi na propaganda.
Não estou querendo dizer que devemos, pois, nos acomodar com pouco e seguir a vida. Não é isso. Ao contrário, com educação financeira, a pessoa conseguirá organizar seus gastos, eleger prioridades e focar melhor no que interessa, para poder alcançar um trabalho que lhe ofereça uma renda melhor.
Aprendamos com Constantin Fiódorivitch: gastar com o que é importante e trabalho árduo, que enriquece não só o indivíduo, mas também todo o seu entorno. Daí a importância da educação financeira, como instrumento de organização da vida das pessoas. O resto vem atrás! A falta de dinheiro pelas famílias, apontada pela deputada, piora muito mais se estas sequer souberem lidar com as parcas finanças.
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