Venenos nas tranças e lama no rap: o drama de ser preto e pobre no Brasil
Para um olhar desatento, mera coincidência. Mas para um olhar um pouco mais apurado, não!
Sábado foi o show de lançamento do segundo álbum do meu grupo de rap, o Gíria Vermelha. Notei que a maioria das pessoas presentes eram mulheres negras com cabelos encaracolados ou trançados. Naquele mesmo dia fiquei sabendo que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) havia determinado que todas as pomadas utilizadas para trançar e modelar cabelos tivessem sua comercialização e utilização proibidas temporariamente. Muitas pessoas que usaram esses produtos relataram efeitos como cegueira temporária, forte ardência nos olhos, lacrimejamento intenso, coceira, vermelhidão, inchaço ocular e dor de cabeça
Ainda neste mesmo sábado, o “Rep Festival”, um dos maiores eventos da história do rap nacional, que seria realizado na cidade do Rio de Janeiro, teve que ser cancelado devido à insegurança e insalubridade do local para onde o evento foi transferido dez dias antes da sua realização. Atrasos, filas, lamas, cobras e choques ao microfone foi o resumo desta sinistra Ópera. Nomes como Racionais, Emicida, Matuê, L7nnon, Filipe Ret, Poze, Djonga, Xamã e Baco Exu do Blues eram algumas de suas atrações.
Para um olhar desatento, mera coincidência. Mas para um olhar um pouco mais apurado, não! Antes de qualquer caracterização, é preciso perguntar: porque logo com os cabelos afros e com um festival de música preta?
O rap e os cabelos trançados têm muito em comum. Nenhum movimento político-cultural contribuiu tanto para “encaracolar” a consciência e fazer a cabeça da juventude afro-brasileira quanto o Hip Hop, muito particularmente o seu canto falado, o rap. Toda uma geração de pretos e pretas deixaram de ser morenos, pardos e mulatos, para assumirem sua negritude embalados por rimas emanadas das entranhas do mundo periférico. Mas, no país do mito da democracia racial tal transição jamais seria meramente estética. Ela foi, antes de tudo, política.
Mesmo para os pretos de cabelos não trançados, assumirem-se enquanto tais já era em si um ato político, sobretudo para os pretos do universo plebeu da comunidade afro. Aqui raça e classe se misturavam como faísca e pólvora.
Ao longo da década de 1990 o rap brasileiro era visto como uma ameaça em potencial. Do estilo, era considerado o rap mais politizado do mundo. Ninguém impôs isso ao rap, como alguns querem deixar transparecer, foi a dura realidade de ser preto periférico que fez essa imposição. Os MCs apenas decidiram bater de frente contra essa realidade e segurar a rebordosa advinda dessa atitude de altíssima periculosidade. Ser MC no Brasil significava aderir à “profissão perigo”.
Não por acaso quase todos os grandes nomes do rap nacional foram perseguidos pela polícia e pela justiça na década de 1990. Os movimentos organizados de Hip Hop que proliferavam como pragas pelos quatro cantos do Brasil também foram alvos de perseguições. Quanto mais perseguidos, mais fortalecidos, quanto mais fortalecidos, mais disseminados. Algo fora do controle. Um Brasil esteticamente mais afro, era a mais pura expressão desse fenômeno político e cultural. Tantos outros movimentos, que não necessariamente ligados à cultura Hip Hop também multiplicavam-se as centenas. Quem só consegue ver nisso mero “identitarismo” não entende absolutamente nada do racismo brasileiro e da luta de classes deste país.
Lembro de toda pressão da “indústria fonográfica” para que os grupos de rap abandonassem os seus “corriqueiros temas”, como se isso fosse mudar a corriqueira realidade de quem nasce preto e pobre no Brasil. Ora, o rap nunca foi uma “fábrica de temas”, o racismo e capitalismo, sim, é que inspiravam os MCs, tal como uma guerra “inspira” um soldado entrincheirado a atacar e se defender do inimigo. O rap brasileiro nasceu entrincheirado, simples assim!
Porém, a burguesia brasileira, que herdou os instintos da “Casa Grande”, soube aperfeiçoar os métodos dos capitães do mato para dispersar esses “quilombos periféricos” da Nova República. Aos poucos foram trocando os chicotes pelos afagos. O rap se transformou num produto, tal como a estética afro. Até a luta contra o racismo também passou a ser utilizada por algumas ONGs para endinheirar-se. Os 13 anos do PT no governo federal ajudou nessa acomodação, que teve um relativo despertar nos últimos quatro anos do governo racista e genocida de Jair Bolsonaro.
Porém, por mais que a playboyzada passasse a consumir o rap, sem ter que “descer” na quebrada, o rap continuava e continua sendo a música da quebrada. Os cosméticos afros também passaram a ser consumidos em larga escala nas comunidades. Dois produtos, um musical e outro estético, consumidos por públicos majoritariamente pretos tem lá suas consequências. As pomadas que causam cegueiras e os festivais realizados em ninhos de cobras são duas demonstrações de que o racismo e o capitalismo andam de mãos dadas, apesar de escondidas.
Assistir às dezenas de depoimentos de mulheres pretas que perderam parcialmente a visão em decorrência da ganância de grupos empresariais, que outrora as envenenavam com as fumaças das chapinhas, é algo indignante. Tão indignante quanto as cenas do mega-festival de rap que circulam pelas redes sociais. Apesar da “playba”, muitos dos que para ali se deslocaram são amantes da cultura Hip Hop que tiraram de onde não tinham para comprar ingressos e custear a estadia. Chegando lá se depararam com um pântano peçonhento, onde as cobras mais venenosas eram os promotores do evento que, visando mais lucro, mudaram a “Cidade do Rap” da Barra da Tijuca para Guaritiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, como se estivessem deslocando escravos de uma senzala para outra. Difícil encontrar um adjetivo para tamanho desrespeito.
Em julho de 2022, dois dos principais MCs aqui do Maranhão foram agredidos pelos próprios seguranças do evento em que foram contratados para tocar. Os dois fariam a abertura do show de ‘Djonga. Ou seja, não se trata de casos isolados.
Ora, se os artistas e a maioria do público do tal “Rep Festival” fossem brancos burgueses, os produtores seriam mais cuidadosos, o que implicaria ter mais gastos. O mesmo podemos falar dos cosméticos. Se fossem destinados para um público mais branco e burguês, não resta dúvidas que a ANVISA seria mais rigorosa com os fabricantes e estes mais cuidadosos com os consumidores, o que implicaria ter mais gastos.
Sim, o mundo que vivemos é esse aqui, em que vale tudo por mais lucro e o racismo segue sendo uma arma nas mãos desses mercadores, onde, diga-se de passagem, a carne mais barata continuará sendo a negra.
Aí quando a coisa chega a níveis extremos como os dois referidos casos, aparecem as mais geniais ideias. A mais difundida de todas é a do “Black Money”, a ideia do mercado negro, ou seja, controlado por mãos pretas, por empresários pretos e pretas. De fato, os empresários que controlam a produção e a circulação de cosméticos afros devem ser quase todos brancos, assim como brancos são todos os empresários que (des) organizaram o “Rep Festival”. Algo mudaria se tais empresários fossem negros? Talvez, porém apenas artificialmente, não em sua essência.
A essência do racismo brasileiro não se mede apenas pela ausência de empresários negros, mas pela funcionalidade que a ele, o racismo, é dada para garantir a existência do próprio capitalismo. Ele serve para naturalizar as profundas desigualdades sociais deste país (o problema não estaria na estrutura de funcionamento desta sociedade e sim na estrutura biológica dos indivíduos negros), para facilitar a acumulação de capital (lucrar mais, gastando menos), para dividir os trabalhadores (o branco pobre que se acha superior ao negro da sua própria classe) e para justificar a presença de um aparato repressivo altamente concentrado nas periferias, vistas como zonas de alta periculosidade, algo que por seu turno legitima o encarceramento e o genocídio negro.
Nenhuma dessas funcionalidades se destrói mudando a cor da mão de quem segura o chicote. Os EUA são o maior exemplo disso. A emergência de uma burguesia negra no país mais poderoso do mundo não mudou a lógica do racismo estadunidense, apenas a ofuscou, principalmente durante o governo de Barack Obama (2009-2017). Enquanto a burguesia imperialista apresentava ao mundo os seus “pretos empoderados”, o proletariado afro-americano tinha suas condições de vida rebaixadas a níveis inferiores ao da era “Jim Crow”, o odioso regime de segregação racial daquele país. Se George Floyd foi assassinado em 2020 por policiais brancos, Tyre Nichols foi morto recentemente em condições parecidas por um grupo de policiais pretos.
Obviamente que não será preciso uma revolução para impor um controle de qualidade mais rigoroso para a produção e circulação de cosméticos afros, assim como para proporcionar eventos de Hip Hop com estrutura e segurança decentes. Não se trata disso. Queremos apenas mostrar que tais descasos fazem parte de algo bem mais amplo e profundo, que é a combinação da opressão racial com a exploração de classe e, que, portanto, jamais será possível combater o racismo sem dar um combate consequente ao capitalismo. A realidade é assim e é assim que tem que ser encarada.
Também não se trata de fazer a roda da história andar para trás. O rap chegou onde chegou e pronto. Mas, é importante que os seus artistas olhem com mais atenção para o seu próprio público, não apenas nos eventos, não apenas como “consumidores”, mas na sua vida cotidiana. O esvaziamento político do Hip Hop não foi espontâneo, ele foi pensado, planejado e executado com relativo êxito. De certa maneira, o rap brasileiro foi “pacificado”. A glamorização de alguns, sufocou o grito de indignação da maioria. É necessário reconhecer que a playboyzada venceu alguns rounds, ainda que a luta esteja aberta.
Encarar isso de frente não significa olhar para o passado com saudosismo, mas para o presente, para a dura realidade de quem vive nele, em que a lama de um festival e o veneno das pomadas são algumas expressões. Feito isso, canções mais engajadas brotarão naturalmente na cena, ajudando a fazer a cabeça da galera se voltar para a luta por um outro modelo de sociedade, uma sociedade sem racismo, sem capitalismo e sem situações desumanas.
As empresas que estavam vendendo veneno para o nosso povo devem ser estatizadas e as vítimas indenizadas. Os empresários do “Rep Festival” devem ser investigados e punidos, além de arcarem com todos os prejuízos do público, e não apenas com a devolução do dinheiro dos ingressos. E a todas às vitimas dessa gente gananciosa, fica aqui a nossa mais profunda solidariedade.
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