O nome que ela atende
Ela era uma jovem cheia de sonhos.
Ela era uma jovem cheia de sonhos.
Nascida em berço conturbado, mas com alma inquieta e esperançosa, caminhava pelas praças, pelas urnas, pelas vozes. Amava debates acalorados, festas populares, greves com cartazes malfeitos e músicas de protesto cantadas em voz rouca. Gostava de escutar, mesmo que nem sempre concordasse. Era dessas que acreditava que o mundo se constrói junto — mesmo entre discordâncias.
Mas um dia, sem aviso prévio, veio a mordaça.
Prenderam-na numa cela fria de silêncio e censura. Tiraram seus direitos, rasgaram sua identidade. Durante 21 longos anos, ela ficou ali, enclausurada. De vez em quando, alguém cochichava seu nome nas esquinas, nos porões, nos exílios. Mas era perigoso demais falar dela em voz alta. E ela, apesar de esquecida por muitos, não desistia. Marcava os dias na parede com unhas e esperança. Sabia que a noite não seria eterna.
Enquanto o país dormia sob o peso da repressão, alguém cantava baixinho:
“Liberdade, liberdade / Abre as asas sobre nós / E que a voz da igualdade / Seja sempre a nossa voz…”
E, naquela cela escura, ela sorria, mesmo em silêncio. Sabia que ainda havia quem lembrasse dela.
Quando finalmente abriram sua cela, em 1985, ela saiu cambaleante. Os olhos ainda se acostumando à luz, a voz rouca de tanto silêncio. Mas estava viva. E, mais que isso, queria viver.
E ela não voltou de mãos vazias. Trouxe de volta os exilados, fez memória dos desaparecidos, deu liberdade aos calados. Quando chegou, uniu uma multidão — gente de todas as cores, ideias e dores — que foi ao seu encontro com esperança nos olhos. Conduzida pelas mãos de um escritor, escreveu um livro que virou lei: a Constituição. Pacificou as praças, devolveu os tanques aos quartéis e devolveu o grito ao povo.
Nos anos que se seguiram, ela tentou se reconstruir. Reaprendeu a andar pelas ruas, a ouvir o povo, a se expressar. Tomou porrada, tropeçou em escândalos, foi alvo de ingratidão. Às vezes, parecia frágil, até ingênua. Mas era resiliente.
Agora, passados quase 40 anos desde que voltou à vida, ela ainda precisa de cuidados. Anda com olheiras de tanto vigiar quem tenta, mais uma vez, trancá-la. Sofre com o desprezo dos que a acusam de não funcionar. Pede socorro quando a confundem com desordem ou a ignoram por conveniência.
Mas ela segue. Respirando, lutando, cantando com quem ainda tem fé:
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia…”
Ela sabe que não pode mais ser deixada sozinha. Já foi presa uma vez. Sobreviveu. Mas agora quer mais do que existir — quer florescer.
Sem nome, tem todos os nomes. Sem cor, tem todas as cores. E quando não sabemos como chamá-la, usamos o nome mais bonito que ela atende sem hesitar: Democracia.
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.