Fraternidade e amizade social
Passados os dias de festa, das mais empolgantes e genuínas manifestações de alegria popular, o ano parece voltar a girar e, de certo modo, correndo mais apressado.
Passados os dias de festa, das mais empolgantes e genuínas manifestações de alegria popular, o ano parece voltar a girar e, de certo modo, correndo mais apressado.
Há exatos sessenta anos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, iniciava a Campanha da Fraternidade. Um convite aos católicos, e a todos os homens e mulheres de boa vontade, a juntarem-se num objeto comum, aproveitando o tempo da quaresma para reflexão e ação concreta em favor da vida e de sua dignidade. Ao longo desses anos, foram muitos os temas abordados. Desde assuntos mais eclesiais, a temas como meio ambiente, saúde, educação, encarcerados, povos indígenas, comunicação, e muitos outros.
Neste ano de 2024, a Campanha da Fraternidade traz à reflexão do povo brasileiro “Fraternidade e Amizade Social” e como lema, “vois sois todos irmãos e irmãs”. A inspiração extraída da Encíclica “Fratelli Tuti”, do Papa Francisco, assinada em Assis, no dia 3 de outubro de 2020.
A aparente obviedade do lema desta campanha parece nos emparedar. Se é tão óbvio que somos todos irmãos e irmãs, por que não vivemos como tal? Há, de fato, como afirmar esta expressão de sermos uma única família humana espalhada sobre a terra, marcada por tantos conflitos, por tantas desigualdades e milenarmente lanceada pelo mal da guerra? Mais que uma pergunta, é um imperativo para o constrangimento. Não! Não vivemos e tampouco nos tratamos como irmãos e irmãs. Aliás, a convivência humana tem sido indiscutivelmente o grande desafio do nosso tempo. Aprisionados em nossas telas, anunciamos abertura ilimitada, informação em tempo real e liberdade plena. Antagonicamente, a frieza, a indiferença e a alienação têm ferido de morte nossas relações. Abertos talvez, mas distantes, cada vez.
Francisco, logo no início da Fratelli Tutti, toma emprestado do outro Francisco, o santo de Assis, um conselho dado aos frades, que passados 800 anos, pode ainda nos inspirar: “escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor do Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». Com poucas e simples palavras, explicou o essencial de uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.”
De um coração aberto, que ama sem pretensões é que ressoa essa utopia de Fraternidade. Francisco, seus primeiros irmãos, Clara e suas primeiras irmãs, iluminaram seu tempo com a fraternidade que viviam, experimentavam e testemunhavam. Não era, sob nenhum aspecto, uma ideologia, nem tampouco, uma filosofia de vida, mas uma atitude a partir de uma descoberta, uma experiência concreta do amor, das mais sublimes. Aquela experiência da quinta-feira santa ao redor da mesa. Antes do pão, antes do vinho e antes da festa, é necessário “abaixar-se’ para lavar os pés, mesmo que quem os lave, seja, ou sinta-se ser “senhor e mestre”. Sem isto, não há verdadeira fraternidade, não há verdadeira comunhão, nem de vida, nem de pão. A insistência de Jesus, ao dizer:” fazei isto em minha memória”, não está separada do gesto do lava-pés, logo, é condição para a participação da mesa comum.
Irmãos que se sentam à mesa para partilhar o pão são irmãos que se curvam para lavar os pés, sobretudo os pés mais sofridos, mais gastos e dilacerados pelo caminho. Nem precisamos ir tão longe, nem alargar demais a reflexão para uma fraternidade universal que considere a geografia do planeta terra. É universal toda atitude que favorece o bem, que defende e promove a vida, que constrói fraternidade nos pequenos e anônimos gestos.
Nunca se falou tanto em empatia, na necessidade de cultivá-la. Contudo, não vejo outro modo de torná-la real sem sairmos do conceito de “proximidade intimista” para o “movimento de proximidade”, de olhar a realidade, tocar as feridas, acolher sem atribuir valor e resgatar o humano amor do qual todos os seres estão plasmados. Aqui, vale lembrar aquela pedagogia, possível e desafiadora do Evangelho do Bom Samaritano. Tornar-se próximo, é talvez de todas as tarefas humanas, a mais difícil de concretizar. Exige muito, pois em cada movimento de aproximação, deixamos um pouco de nós.
Há sinais de retrocesso pelo caminho. A colonização cultural na qual fomos emergidos, ou nos fizemos emergir, nos moldou ao consumo, à produção ininterrupta e à busca incessante pela perfeição do corpo, pela felicidade, pela tida realização pessoal. O que tem de errado em tudo isso? A felicidade, não o fim último da pessoa humana?
Deixemos Francisco nos explicar:
“No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que abandona os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim.”
Enquanto fevereiro se despede, e com ele a euforia do Carnaval, desçamos aos pés da humanidade ferida, longe ou perto de nós, dos esquecidos de ontem e de hoje, e nos unamos àqueles e àquelas que se dedicam a aliviar a fome, a dor e o desprezo dos nossos irmãos e irmãs colocados à margem da história, por vezes, perseguidos e ameaçados.São muitos, graças a Deus, os que povoam o mundo com as sementes da fraternidade e da paz. Com eles, com o Francisco de Roma e o Francisco de Assis, alimentamo-nos de esperança e dessa bonita utopia: “Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!”
Assim quem sabe, um dia, aqui ou em um lugar no universo, descobriremos e verdadeiramente viveremos como irmãos e irmãs.
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