Encontro

Festa de São Marçal, tradição que embala bumba-bois há 91 anos

Homenagens, devoção e fé fortalecendo a cultura maranhense; festejo traz fatos importantes da história de São Luís; brincantes viraram figuras conhecidas

MONALISA BENAVENUTO, O ESTADO DO MA

Atualizada em 11/10/2022 às 12h30
Estátua de São Marçal, instalada na avenida que leva o nome do santo e é palco da festa, no João Paulo

SÃO LUÍS - A origem de São Marçal possui diversas teorias que, juntas, fortalecem cada vez mais a fé de seus devotos. No Maranhão, as tradicionais homenagens aos santos juninos são encerradas ao dia 30 do mês com a festa dedicada a São Marçal, na avenida que hoje leva seu nome, no bairro João Paulo, onde ocorre o Encontro de Bois de Matraca. Atualmente, a festa recebe milhares de pessoas que, a cada ano, incrementam as comemorações, consolidam a cultura e aquecem setores econômicos, mas nem sempre foi assim.
Hoje, o evento evidencia também a força de um dos maiores patrimônios culturais maranhenses, o bumba meu boi. A avenida São Marçal se enche de cores e brilho. O som das matracas e pandeirões arrastam multidões pelo João Paulo. A passagem pelo bairro é uma tradição que encanta brincantes e chama atenção de quem admira a cultura local. Mas, os primórdios desta celebração revelam disputas de classes e forte discriminação que até os dias de hoje vem sendo enfrentada em nosso estado.
Os mais antigos contam que o primeiro Encontro de Bois no João Paulo aconteceu em 29 de junho de 1928, quando os batalhões do Boi do Lugar dos Índios, do povoado São José dos Índios, em São José de Ribamar, e o Boi da Maioba, se reuniram no espaço onde hoje é a Praça Ivar Saldanha, sob o pedido de José Pacífico de Moraes, comerciante e apreciador da cultura popular, que resolveu reproduzir em seu bairro um encontro que já ocorria desde 1924, todo dia 29, em honra a São Pedro, na então Vila do Anil.
O encontro se repetiu por todos os anos até 1949, quando foi para o Monte Castelo, mas ficou lá somente um ano. Depois, foi para o Bairro de Fátima e rodou por outros bairros até retornar ao João Paulo, em 1959.

Intolerância
Alguns historiadores da cultura maranhense relatam a intolerância sofrida por grupos folclóricos no estado. Em sua obra “Preconceitos e perseguições a religiões e festas populares”, o professor doutor Sérgio Ferretti expôs que o bumba meu boi foi muito rejeitado pela elite maranhense e entre os anos de 1920 e 1940, portarias da Polícia Civil proibiam as apresentações dos grupos desde o Anil à esquina da Avenida Getúlio Vargas com a rua Senador João Pedro, além de bailes ao ar livre no largo do João Paulo.
Apesar das proibições, o bairro tornou-se um importante palco do bumba meu boi, mas somente nos anos 1980 a festa tomou a forma atual. Em 2006, a Prefeitura de São Luís, depois de sancionada a lei que alterou o nome da antiga Avenida João Pessoa para São Marçal, atribuiu à Festa de São Marçal, através da Lei nº 4626, de 14 de julho, o título de bem cultural e imaterial, transformando a data no Dia Municipal do Brincante de Bumba Meu Boi e, no ano seguinte, foi erguido, na mesma avenida onde é celebrada a festa, um monumento que representa a popularidade do festejo e homenageia o santo.
Neste ano, a festa chega a sua 91ª edição e mais de 30 grupos folclóricos devem se apresentar durante as comemorações, que começam ainda na noite do dia 29 e se estendem por todo o dia 30 de junho, com a participação de aproximadamente 300 mil pessoas durante todo o evento, de acordo com Instituto São Marçal de Cultura e Desenvolvimento Social.
Além de homenagear o santo, a festa é dedicada também aos integrantes dos grupos de bumba meu boi que, durante todo o mês se dedicam a apresentações e neste dia tem sua oportunidade de diversão, com o apoio das diretorias das brincadeiras.
“A gente costuma dizer que é o dia do brincante, porque eles passam todo o período de São João brincando para o boi ganhar cachê, pagar suas despesas. Então naquele dia ele vai brincar junto com o povo e a diretoria tem que apoiar, levar os integrantes”, ressaltou.

Osmarina Costa e família preparam e distribuem para brincantes mocotó, peixe frito e cozido e caldo de ovos

Amor pela festa que atravessa o tempo

Admiradores da cultura maranhense também fazem parte da festa. A aposentada Claudete Lucena, de 65 anos, participa das homenagens a São Marçal há mais de 10 anos, acompanhando o Bumba meu boi da Pindoba e se sente encantada a cada edição.
“A primeira vez que eu fui, tinha passado a noite toda acompanhando as apresentações do boi e amanheci no João Paulo. Depois disso, vou todos os anos, porque acho a festa linda. Todo mundo vai para se confraternizar, é uma magia, uma coisa muito boa. Eu acho que nunca vou deixar de ir, porque eu gosto mesmo é dos bois de matraca. Gosto de ver o Boi de Maracanã, Boi de Ribamar, Boi da Maioba, Boi da Pindoba. O som da matraca é a minha paixão”, contou.
Muitos brincantes vão além e incentivam diretamente a manutenção da tradição. Dona Osmarina Costa mora há mais de 30 anos no bairro João Paulo e desde que chegou por lá, acompanha a festa. No início, segundo ela, ir para a avenida assistir às apresentações era um problema.
“Meu marido não gostava e eu fugia para ir para o boi. Ele ia para o serviço, eu fechava o comércio que nós tínhamos e me mandava. Ele tinha horror quando chegava em casa e não encontrava a comida pronta e eu chegava em casa com o pé todo preto, sujo, porque naquela época eles faziam fogueira, mas eu não estava nem aí”, explicou.

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Mocotó
Com o passar dos anos, ela se tornou uma figura importante e muito conhecida pelo público do evento e, atualmente, até o marido participa da produção do tradicional mocotó e caldo de ovos distribuídos por Dona Osmarina e a família a todos os brincantes que participam do encontro.
“Começou com as minhas irmãs que vinham para a minha casa e traziam as amigas e sabe como é gente do interior, sempre quer dar comida. Eu falei pro meu marido e ele começou a comprar os ingredientes e eu fazia o mocotó. Aí um foi falando para o outro e parece que aqui é que é a festa”, esclareceu dona Osmarina.

Começou com as minhas irmãs que vinham para a minha casa e traziam as amigas e sabe como é gente do interior, sempre quer dar comida. Eu falei pro meu marido e ele começou a comprar os ingredientes e eu fazia o mocotó. Aí um foi falando para o outro e parece que aqui é que é a festa”Osmarina Costa, que mora no João Paulo e participa da festa há há mais de 30 anos


Ela e a família abrem as portas da casa localizada na Rua da Cerâmica e distribuem todos os anos, para quem participa da brincadeira, aproximadamente 50 kg de mocotó, 20 kg de peixe frito e cozido e um panelão de 20 litros de caldo de ovos, além dos acompanhamentos e das bebidas. E, ao contrário do que muitos supõem, dona Osmarina não cumpre promessa nem recebe doação para a produção dos pratos. Ela não sabe precisar quanto gasta todos os anos para cumprir a tradição, mas garante que faz tudo isso por amor à festa. “É uma satisfação”, destaca.
Além da fé e da cultura, a festa movimenta também a economia da cidade. Nos dias que antecedem as comemorações, vendedores ambulantes já começam a demarcar os espaços para instalar suas bancas e barracas de bebidas e comidas. Outro produto que faz bastante sucesso entre os brincantes, é o principal instrumento da festa: as matracas. Artesãos aproveitam o período para vender os instrumentos e garantem que a procura é intensa.

Multidão acompanha o Boi de Maracanã durante passagem pelo Encontro de Bois, no João Paulo

Imaginação popular marca muitas histórias sobre o santo

São Marçal foi bispo de Limoges, França, no século III da era cristã. Não há informações precisas sobre sua origem, data de nascimento ou morte, nem tampouco sobre os atos praticados em seu bispado. Sabe-se apenas que, durante o consulado de Décio e de Grato, sete bispos foram enviados de Roma para a Gália para pregar o Evangelho. Gatien seguiu para Tours, Trofimo para Arles, Paulo para Narbonne, Saturnino para Toulouse, Denis para Paris, Austromoine para Clermont e Marçal para Limoges. Como sempre se fazia acompanhar por dois padres trazidos por ele do Oriente, cogita-se que Marçal também tenha vindo de lá. O fato é que ele foi bem-sucedido na conversão dos moradores de Limoges, onde tornou-se uma figura venerada.
A imaginação popular, tão propensa a criar lendas e fantasias, logo transformou São Marçal em um apóstolo do século I, enviado à Gália pelo próprio São Pedro. Ali, ele teria evangelizado não apenas a província de Limoges, mas toda a Aquitânia. Ainda segundo as lendas, São Marçal fez muitos milagres, como o de trazer um morto de volta à vida ao tocá-lo com uma vara dada por São Pedro.
Atualmente, já está provado que a honra devida a São Marçal não se deve à lenda de que ele teria sido um dos 72 discípulos de Cristo, mas sim por ter sido o primeiro pregador da fé cristã em Limoges e nada além disso.
Buissas, bispo de Limoges, fez uma petição à Santa Sé em 1853 para que São Marçal não fosse privado das honras recebidas a tanto tempo. Pio IX, em seu decreto de 8 de maio de 1854, recusou-se a dar a São Marçal o título de discípulo de Cristo, afirmando ainda que apenas a sua veneração era muito antiga. Existem duas epístolas na Biblioteca de Patrum atribuídas a São Marçal, mas ambas são consideradas apócrifas.

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