Os dois eus e o ser que me veste
Nos textos apócrifos de judas, o iscariotes, o senhor jesus disse a seu discípulo: "tu suplantarás a todos os outros porque sacrificarás o homem que me veste"!
Nos textos apócrifos de judas, o iscariotes, o senhor jesus disse a seu discípulo: "tu suplantarás a todos os outros porque sacrificarás o homem que me veste"! Você certamente entendeu o que quer dizer: o homem que me veste; e a partir daí entenderá o restante.
Começaremos dividindo você em dois seres: o ser consciente que lê intencionalmente este artigo para alguma finalidade e o ser que o veste que está tentando decifrar as palavras que seguirão e em que elas podem servir para sua vida. Portanto, sinta-se raro se você chegou até aqui. A grande maioria das pessoas é conduzida quase exclusivamente pelo ser que as veste e estão agora se distraindo no Instagram ou fazendo algo menos trabalhoso que pensar em coisas complexas como esse texto.
Toda atitude animal sempre foi moldada por estímulos conduzidos pela seleção natural; e isso é uma constatação e não um julgamento. Melhor explicando: você foi somando “testes” de condutas que sofreram aprovação ou reprovação nas circunstâncias em que vivia no decorrer da vida. E isso acontece desde as últimas semanas intrauterinas até seu último suspiro. Tanto outros animais quanto nós, sapiens, fomos essencialmente moldados por nossos instintos de sobrevivência.
Porém, após o surgimento do neocórtex e sua correspondente complexidade mental, emerge, dentre nós, a consciência da própria existência. Sim, outros animais sentem e agem protegendo sua existência, porém não sabem disso.
Tudo, desde então, se divide entre o fazemos e o que realmente nossa consciência nos manda fazer. O que deveria acontecer, segundo nossas expectativas, e o que realmente acontece.
Do ponto de vista biológico, seus órgãos funcionam sozinhos e se adaptam às suas condições no decorrer da vida. Um fumante tem seus pulmões menos elásticos, um cardiopata tem seu coração mais debilitado, um nefropata tem rins filtrando sangue com mais dificuldade e suas plantas dos pés engrossam se muito andar descalço.
O problema é que isso ocorre também com seu cérebro. Ele pensa o tempo todo e cria previsibilidades involuntariamente. Tudo que suas ideias e conclusões projetam levam em consideração o que você viveu, ou mentalmente abstraiu. Vieram unicamente do repertório de sua existência (e como você percebeu os fatos). Nada pode sair de você que não tivesse, de alguma forma, entrado; na maioria das vezes de maneira inconsciente. O seu ponto de vista é apenas a vista de um ponto.
Então você não sofre pela morte de uma criança atropelada neste exato momento no centro de Shenzen porque simplesmente seu cérebro é incapaz, sem contexto algum, de criar esses fatos. Você cria elásticos dicotômicos e, por vezes, paradoxais, para sustentar estruturas psicológicas consolidadas que são completamente contraditórias com suas realidades de hoje. Em resumo, você insiste na mesma dieta que serviu uma vez anos atrás e ainda espera emagrecer.
Mas por que os dois eus nos tornam seres que sofremos mais e o que fazemos para aliviar esses sofrimentos?
A resposta está na dissonância entre sua consciência (cheia de moralismo, limitações comportamentais, valores e culpas que sua “cultura” pregressa o ensinou) e o cérebro repleto de lacunas evolutivas, programações que precedem seu nascimento que hoje podem nos fazer mais mal que bem.
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As duas maiores lacunas que nos levam ao sofrimento são: o cérebro hiper vigilante; significa que seu foco e pensamentos são voltados prioritariamente a evitar riscos que buscar recompensas e acabou por “viciar-se” nisso criando verdades negativas e acreditando que irão acontecer.
A outra lacuna evolutiva é a intolerância às imprevisibilidades. Tente dar-se um susto; impossível, né! Antes do fato seu cérebro já previu o que aconteceria e não foi mais surpresa. Para provar isso um estudo com bebês em gestação de 35 semanas em que apresentam sinais elétricos em quebras de padrões sonoros previstos. Eles ouvem sons em sequências e quando há ruptura do curso eles emitem um sinal chamado p300 mostrando que criam expectativas do que vai acontecer mesmo sem consciência. Portanto, o cérebro por si só cria cenários futuros mesmo que você não queira.
Somadas, a tendência em prever acontecimentos e a propensão a imaginar riscos acabam por fazer do cérebro o órgão que cria verdades complexas que supõe o que deveria existir. E aí reside o perigo: o quanto você acredita nelas.
Certamente você deve ter jogado Tetris. Aquele joguinho dos anos 90 que encaixava os quadradinhos e nos viciava horas sem ver o tempo passar. Acontece que seu cérebro ininterruptamente cria padrões para economizar energia. Ele faz isso com suas roupas no armário, no local de sua escova de dentes ou na perspectiva da sua profissão, relacionamentos ou saúde. E isso acontece de forma automática e inconsciente.
Outro ponto é que evolutivamente o maior preditivo de valor em algo é sua ausência. Tendemos a dar mais valor às coisas que não temos (ou que tínhamos) porque se o valor dado fosse igual ao que temos dificilmente o sistema motivacional buscaria coisas novas ou mudanças e nos reduziríamos à sobrevivência básica; comida, água, abrigo e tribo.
Somamos então o cérebro às previsões e expectativas automáticas (baseado no que ele viveu e pretende viver) ao super valor que ele dá ao que não tem. Eis os ingredientes do sofrimento decorrente do excesso de presunção que exige o que “deveria” existir. Estejamos prontos para frustrar nossos planos ou buscaremos culpados para justificar os projetos errados da vida.
Então temos agora o órgão capaz de criar pensamentos automáticos complexos, previsões padronizadas de futuros, expectativas e merecimentos lutando com o cérebro consciente que tenta explicar por que aquilo aconteceu!! Agora você entende onde nascem a culpa ou remorso, emoções secundárias exclusivamente sapiens. Sintetizando: se você esperava algo que não ocorreu ou você carregará a responsabilidade a si, ou culpará terceiros pelo insucesso que seu cérebro não esperava.
Então resta-nos saber navegar nos mares dessa dualidade entre ser e deixar-se ser. Entre o que seu cérebro tende a funcionar como um órgão automático e a sua consciência que o torna humano. O segredo está em quão apego você tem à realidade que você mesmo criou. Quanto você consegue aceitar as imperfeições e imprevisibilidades de sua vida e a continuar remando.
O ser que o veste deve andar alinhado com o ser consciente para haver paz interior. Ordenando os dois eus, a melhor maneira de seguir em frente está na segunda lei espiritual indiana: “aconteceu a única coisa que poderia ter acontecido nada, absolutamente nada do que acontece em nossas vidas poderia ter sido de outra forma. Mesmo o menor detalhe. Não há nenhum “se eu tivesse feito tal coisa…” ou “aconteceu que um outro…”. Não. O que aconteceu foi tudo o que poderia ter acontecido, e foi para aprendermos a lição e seguirmos em frente. Todas e cada uma das situações que acontecem em nossas vidas são perfeitas”.
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