
Na mochila, o que levar?
Há uma mística profunda no deserto. Mais do que uma geografia, o deserto é um estado da alma.
Há uma mística profunda no deserto. Mais do que uma geografia, o deserto é um estado da alma. É o lugar onde tudo se cala, onde os ruídos do mundo se dissipam, onde as escolhas gritam. Ele impõe a aridez – da paisagem, do tempo, do espírito – e convida, paradoxalmente, ao encontro consigo mesmo. Quando tudo é prioridade, o deserto ensina o contrário: que quase nada é. Ele impõe o essencial, porque nele só o essencial sobrevive.
Vem de longe o fascínio e a simbologia mística do deserto. O povo hebreu passou por ele, foi ali o lugar das provações e da manifestação do alento divino. João Batista foi ao deserto, Jesus foi levado ao deserto. Místicos, monges, eremitas, filósofos, hippies e loucos recorreram a ele. *O que há nesse lugar?* De onde vem essa atmosfera quase misteriosa?
A vida, por vezes, se assemelha a esse vasto território seco e silencioso. Caminhar pela existência é, às vezes, como atravessar uma planície de areia incandescente sob um céu impiedoso. Há sede, há exaustão, há dúvidas a cada curva sem trilha. O peso do caminho é real: são as perdas, os fracassos, os medos que teimam em reaparecer a cada novo passo. Quem nunca viu ou sentiu um olhar cansado e perdido? Quem nunca se deparou com a insegurança do rumo e o cansaço da estrada? O chão parece sempre o mesmo, os horizontes distantes, as respostas escassas. E, ainda assim, seguimos.
O fascínio do deserto está justamente nessa contradição: ele é hostil, mas também é liberdade. No meio da aridez, amplia-se o olhar. Sem distrações, sem cercas, sem muros – vê-se mais longe. A luz, ao incidir sobre o deserto, desenha contornos mais nítidos. Assim também é com a vida quando nos despimos das máscaras, das falsas urgências, das distrações. É no deserto que vemos com mais clareza a nós mesmos, nossas escolhas, nossas feridas.
Há, no entanto, uma ambiguidade que marca essa travessia. A solidão no deserto é intensa, quase palpável. Mas ela não exclui a presença do outro. Às vezes, a companhia aparece como uma sombra ao lado, uma palavra no silêncio, um olhar que não pesa, mas sustenta. Outras vezes, o outro é apenas lembrança ou ausência. E, mesmo assim, está ali. Porque o deserto da vida é sempre povoado: por memórias, por fantasmas, por esperanças.
Olhar para o futuro, no deserto, é um exercício de fé. Não se vê o oásis. Apenas se acredita que ele existe. Por isso, cada passo é uma escolha difícil: insistir ou desistir, calar ou gritar, carregar ou deixar cair. E, quando tudo parece prioridade, o deserto, mais uma vez, ensina que a vida não comporta todos os pesos. É preciso aprender a soltar, a desapegar, a discernir o que vale ser levado adiante, na mochila e na vida.
O deserto, enfim, é metáfora viva da existência. Não há quem não o atravesse. E, embora marcado por dores, ele também oferece revelações. A vastidão que nos assusta é a mesma que nos liberta. A ausência de caminhos é a chance de desenhar o próprio. O calor que queima é o que forja. E, sobretudo, a luz que nele brilha – mais forte, mais limpa, mais plena – é a mesma que, um dia, nos fará compreender que era preciso passar por ali para finalmente ver.
Porque no deserto, como na vida, não se trata apenas de sobreviver. Trata-se de aprender talvez a viver com menos peso, mais lucidez e uma esperança que resiste mesmo quando o horizonte parece não chegar. É quase sempre repetir com muita ou pouca convicção, como num mantra de resistência, a exclamação de Dom Helder: “ sim, é verdade, o deserto começa a *florir*".
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