COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Aqueles ombros

Sinto nos ombros uma resposta cumprida em perguntas que não cessam. Sem tempo para respondê-las, sigo o caminho, tenho tarefas para cumprir.

Kécio Rabelo

Vez por outra, alguém pronuncia quase como que numa sentença que a vida é dura. E é verdade que, às vezes, pesa. Carregamos, desde muito cedo, o peso natural de algumas responsabilidades, daquelas primárias que definem a nossa existência aqui. O cuidado com o corpo, a higiene, o conhecimento, o sustento, as relações. O próprio ato de existir nos impõem algum peso. Um dia desses, em um programa do tipo que assistimos um trecho enquanto mudamos de canal, uma jovem apresentadora lia um texto - não sei quem era o autor - que falava sobre levar a vida com leveza, sem assumir grandes responsabilidades e como num estado permanente de férias. A plateia e o entrevistado eram instados a comentar sobre aquela afirmação. Um jovem de cabelos compridos, camiseta regata e brincos pesados (acho que se chamam alargadores) discordou do pensamento e expôs suas razões: “Não se pode viver a vida como se estivéssemos sempre de férias, isso tiraria o sentido das férias, e também o da vida”. Parei um pouco mais do que poderia para acompanhar o desfecho da discussão. Outra jovem, ao replicar a fala do rapaz, acrescentou: “na vida, as responsabilidades são necessárias. Ou então estaremos tirando a liberdade de alguém em nome da nossa. Isso é egoísmo!” – afirmou. A discussão era longa e se estendia. Precisava continuar a leitura de um processo complexo, cujo prazo para recurso era o dia seguinte. Tinha uma responsabilidade a me chamar e a me expulsar da conversa.

Aquela afirmação do rapaz reverberou por uns dias. Sem tempo, não tive como escrever sobre ela antes, o que me proponho agora, sem o calor daquele debate e com um certo peso nos ombros, depois de um dia de trabalho puxado. Se a vida tem um peso? Nem penso que tenha. Prefiro pensar que nós é que comumente amontoamos demais, atraímos e sustentamos cargas que sequer nos pertencem, ou em nada colaboram com a completude da vida, com sua plena realização. São os adereços e penduricalhos a tomar o lugar do essencial, da obra- prima e pura que é a vida que nos foi dada, tesouro valioso, que nas palavras do apóstolo Paulo, “carregamos em vasos de barro” (cf. 2 Cor 4, 7). Mas sei também daqueles pesos que a caminhada nos impõe e que, por vezes, somos obrigados a carregar. Eles são determinados pelas circunstâncias ou pelas opções de padrão e sentido, geralmente impostas por nossas próprias regras e anseios. É a velha e perigosa busca incessante pela realização, destino final da pessoa humana, caminho desconhecido de parte esmagadora da humanidade.

O otimismo e a crença na vida não nos deixam baixar a cabeça. Há um pulsar de liberdade que habita o profundo do nosso ser que não permite apagar a chama da teimosia, nome rebelde da esperança. Se o cansaço for - e às vezes é- companheiro nosso de cada dia, é sinal de que no caminho não estamos atentos às possibilidades de parada, de descanso, de reencontro e recolhimento. Nessa viagem interior, não há campeões nem atrasados, são todos caminheiros, atletas de performance igual. Cada um parte do seu ponto, desvia por seus atalhos e chega na sua hora. A chegada é a toda hora e toda hora é hora de partir. Nem é preciso ir tão longe para dar razão àquele jovem, de férias a vida esfriaria em nossas mãos.

Se a tentação de não experimentar a visita da dor e do cansaço nos é constante, deve ser também constante nossa disposição de realocar nossos fardos, dividir os pesos e dispensar os excessos que sobrecarregam nossos ombros. A moldura não pode e nem deve ofuscar a beleza da obra que ela adorna.

Nem tanto os pesos, às vezes a fragilidade dos ombros. Nem são os fardos, mas a debilidade do equilíbrio, o desconhecimento estranho do humano valor de nossas falhas, de nossos limites, da outra parte de nós que só o travesseiro conhece. Por aquele rapaz e o que ele disse, lembrei de Gullar e encerro com reverência, tomando emprestadas suas palavras em “Traduzir-se”:

 

“Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.


Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte delira.

 

Uma parte de mim

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almoça e janta:

outra parte

se espanta.

 

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.


Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

– que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?

 

Sinto nos ombros uma resposta cumprida em perguntas que não cessam. Sem tempo para respondê-las, sigo o caminho, tenho tarefas para cumprir.

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