COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Vidas Secas

Vidas Secas, considerada a obra-prima de Graciliano Ramos, foi publicada pela primeira vez em 1938 e narra a história de uma família de retirantes.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso

Graciliano Ramos nasceu em 27 de outubro de 1892, no município alagoano de Quebrangulo, e faleceu em 20 de março de 1953, no Rio de Janeiro. Foi romancista, cronista, contista, jornalista e político. Considerado o mais importante ficcionista da Segunda Fase do Modernismo — ou Modernismo dos anos 30 —, Graciliano foi um dos maiores romancistas brasileiros. Teve seus livros traduzidos em vários idiomas, inclusive alguns deles foram adaptados para o cinema.

Adepto da vertente regionalista, em suas obras, os personagens e o espaço se misturam, formando um só, isso porque é destacada a influência do meio, através do determinismo, segundo o qual as pessoas são determinadas pelo meio em que vivem. Assim, com enredos dinâmicos e uma linguagem simples, o autor teceu diversas críticas de cunho sociopolítico. Vidas Secas, considerada a obra-prima de Graciliano Ramos, foi publicada pela primeira vez em 1938 e narra a história de uma família de retirantes.

Recentemente, a obra de Graciliano entrou em domínio público, por isso, as principais casas editoriais brasileiras estão trabalhando em reedições dos livros do autor. Dentre elas, vale a pena destacar a Global Editora, que neste ano de 2024, lançou uma bela edição de Vidas Secas, que conta com o posfácio do grande crítico literário Alfredo Bosi e traz xilogravuras — artes visuais que destacam a cultura e identidade do povo nordestino — na capa.

Mas o que seriam vidas secas? Se referem apenas às dificuldades enfrentadas pelas pessoas que foram atingidas em cheio pela dureza do período de secas, no Nordeste? Ou é algo que vai além, chegando a ser uma ferida interna? Vidas secas são aquelas que foram afligidas, de fora para dentro, não somente pela escassez de água, mas também pela pobreza extrema, pela falta de expectativas e sonhos. São vidas que foram expostas por muito tempo à crueldade das injustiças, por isso, secaram. 

O livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, não foi concebido primeiramente como um romance — por esse motivo seus capítulos não seguem uma ordem linear, havendo algumas lacunas. Na verdade, essa narrativa teve início no formato de contos avulsos, que foram escritos em um momento muito delicado na vida do autor, quando este passou por uma grave crise financeira, e precisou vendê-los a conta-gotas para pagar o aluguel de uma pensão na qual vivia com sua família.

Vidas Secas narra as dificuldades e instáveis esperanças de uma família de retirantes nordestinos, formada pelo pai, Fabiano, a mãe, Sinha Vitória, a cachorra Baleia e os dois filhos do casal, ambos sem nome, que eram apenas chamados de “filho mais novo” e “filho mais velho”. Ou seja, até a cadela tinha um nome para chamar de seu — Baleia que, aliás, é um nome bem irônico para um animal terrestre que sobrevive, a duras penas, em meio à seca —, mas as crianças não tinham. Por qual motivo?

Talvez por medo, os pais não lhes deram nomes, para não se apegarem caso eles viessem a falecer em meio à escassez ou, quem sabe, para não lhes tirar o mistério: “Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. [...] Vistas de longe, eram bonitas” (Ramos, 2024, p. 84). No início do romance, a família de retirantes estava fugindo da seca, e lutando pela sobrevivência, eles precisaram sacrificar um papagaio de estimação para servir de alimento.

Um papagaio imita as palavras que escuta. Porém, o papagaio dessa família era mudo. Constantemente tristes, os retirantes eram extremamente calados, por isso, o animal também não falava nada. É importante destacar que a falta de expressão e dificuldade na comunicação dessa família é perceptível em toda a narrativa. Eles até chegaram a acreditar que eram injustiçados, a todo momento, por não saberem “falar direito”, quando na verdade eram subjugados por sua classe social desprestigiada.

Após muitas horas de caminhada sob o sol escaldante, as rachaduras do solo passaram para os pés cansados dos retirantes, além da fome, também enfrentaram muita dor e ferimentos. Então algo acontece, eles olham para o céu e veem uma única nuvem se formar, logo uma fagulha de esperança se acende. Fabiano sonha com os olhos abertos, imaginando como seria a vida deles se ocupassem a fazenda abandonada que se encontrava ali por perto. 

Sonhou que a chuva ressuscitaria a terra morta e que traria saúde para os seus filhos e esposa. Imaginou como seria ser o dono daquele lugar. A chuva, de fato, ressuscitou a fazenda. O sonho de Fabiano se cumpriu, em parte. Eles conseguiram um abrigo. No entanto, a chuva também trouxe consigo o dono da fazenda. Para não serem expulsos, Sinha Vitória e o marido concordaram em cuidar da terra como caseiros. Além disso, Fabiano trabalharia como vaqueiro.

É digno de nota o contraponto entre Fabiano e a cachorra Baleia. Se por um lado, o vaqueiro acreditava que a cadela era “como uma pessoa da família, sabida feito gente” (Ramos, 2024, p. 36); por outro, considerava a si mesmo como um bicho e não um homem: “Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha” (Ramos, 2024, p. 21). É perceptível a humanização do animal e a animalização do homem.

O tempo foi passando e a família já estava acostumada à fazenda, às suas atividades rotineiras e, até mesmo, ao patrão que era um homem violento, arrogante, que gostava de impor a sua autoridade, sem nenhuma razão: “Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro [...] o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?” (Ramos, 2024, p. 25). Quantas pessoas não administram suas doses diárias de poder oprimindo os subalternos desse mesmo modo?!

Não tendo como se defender e, muito menos, como despejar a sua fúria nos reais opressores, Fabiano e Sinha Vitória descontavam nos filhos. Além de não terem nomes, as crianças constantemente eram agredidas, sem motivo algum. Até mesmo a curiosidade, que é um atributo próprio da infância, era reprimido nos garotos: “eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha. [...] Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito” (Ramos, 2024, p. 24). 

Talvez esse fosse o real motivo de sua raiva. Não queria que os filhos fossem curiosos e descobrissem que não tinham nada, isso os deixaria eternamente insatisfeitos. Como sobreviveriam aquele mundo cruel?! Apesar da hostilidade com que tratavam os meninos, a relação de Fabiano e Sinha Vitória era bem diferente. Tinham brigas pontuais mas, na maioria das vezes, eram companheiros, amigos em todas as situações. O vaqueiro admirava a sua esposa mais do que ninguém, pedia seus conselhos e os atendia.

Em certo dia, Fabiano estava fazendo compras na cidade e foi convocado por um soldado para jogar cartas com ele: “Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que tinha autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia” (Ramos, 2024, p. 30). Essa atitude cortada o colocou em uma péssima situação, pois o soldado não sabia perder e, somente por isso, armou uma arapuca para prendê-lo injustamente. 

Após uma noite na cadeia, que o fez sentir muito medo de deixar sua família sozinha por tanto tempo, Fabiano sentiu-se ultrajado: “sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa” (Ramos, 2024, p. 97). No futuro teve oportunidade de se vingar do “soldado amarelo”, mas decidiu não fazê-lo. 

Sempre pensava na família, não podia deixá-los desamparados. Por isso, uma das passagens mais tristes do romance é a morte da cachorra Baleia — que, como foi mencionado anteriormente, era considerada como um membro da família. A cadela ficou doente e muito debilitada, e para aplacar o seu sofrimento, a contragosto, Fabiano precisou sacrificá-la. Sua decisão entristeceu a todos.

Quando se vive uma vida seca, até mesmo os seus maiores sonhos são ninharias. Quando não se tem nada, se deseja pouco. O maior sonho de Sinha Vitória, por exemplo, era ter uma cama decente, não aguentava mais dormir na incômoda cama de varas. Apesar de ser algo tão simples, nunca foi concretizado e Fabiano ficava angustiado por não poder realizar o sonho da esposa. Trabalhava muito, dava seu sangue e suor pela fazenda, mas a cada prestação de contas o dinheiro diminuía, e ele não podia nem mesmo reclamar, pois logo vinham as ameaças do patrão. Se fosse expulso, para onde iria com a família?!

Assim, Fabiano suportava tudo, calado e cabisbaixo. “Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. [...] Era sina. O pai vivera assim, o avô também. [...] Conformava-se [...] Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos” (Ramos, 2024, p. 97). Tudo ia de mal a pior quando a época da seca retornou, com toda a sua fúria, trazendo consigo um rastro de destruição e morte.

Foi então que Fabiano e Sinha Vitória decidiram levar seus filhos para um lugar “melhor que os outros onde tinham estado. [...] Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? ” (Ramos, 2024, p. 122). Quiseram dar uma chance melhor para os garotos, matriculá-los em escolas onde aprenderiam “coisas difíceis e necessárias”. 

É digna de nota a mudança que foi operada nos protagonistas. No início do romance, Fabiano e Sinha Vitória não tinham voz e eram muito hostis com seus filhos, mas agora falam sobre sonhos de uma vida melhor, mais digna e justa, têm grandes planos para os meninos. Portanto, o desfecho de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, traz uma mensagem de esperança. É preciso revoltar-se contra as injustiças e fugir de situações abusivas.

 

REFERÊNCIA:

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas [1938]. 1ª ed. São Paulo: Global, 2024.

 

Vidas Secas está disponível para venda no site da Global Editora: https://grupoeditorialglobal.com.br/catalogos/livro/?id=4667 

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