
A arte da diplomacia
Tiago dos Santos existe realmente, não é personagem de ficção, embora aqui se abrigue pudicamente debaixo de outro nome. Se lerem o que segue compreenderão a prudência de arranjar um pseudónimo para uma pessoa que vive eternamente na corda bamba.

Galardoado com o Prêmio Camões de Literatura de 1997, o angolano Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, é um dos nomes mais importantes da literatura de língua portuguesa. Com uma obra de forte cunho político, seus romances fornecem uma profunda, sarcástica e mordaz análise da vida contemporânea de Angola. Participante da luta emancipação política de seu país, lutou juntamente com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) para a libertação da sua terra natal, chegando a ser Vice-Ministro da Educação no governo do presidente Agostinho Neto após a independência, além de docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade Agostinho Neto em Luanda. Autor prolífico e comprometido com o seu tempo e seus ideais, a obra de Pepetela constitui um rico e vivo testemunho da luta contra a injustiça, a violência e o terror.
Em sua sexta edição, o projeto Conversações de Além-Mar terá a honra de receber Pepetela para um bate-papo. Como prévia desse encontro histórico, publicaremos algumas de suas crônicas como esboços de um diálogo que, em breve, poderá ser feito com o próprio escritor.
A ARTE DA DIPLOMACIA
Tiago dos Santos existe realmente, não é personagem de ficção, embora aqui se abrigue pudicamente debaixo de outro nome. Se lerem o que segue compreenderão a prudência de arranjar um pseudónimo para uma pessoa que vive eternamente na corda bamba, cheio de segredos que poderiam, se revelados publicamente, criar-lhe sérios problemas. Kwanza-suíno de gema (como nós aqui chamamos carinhosamente aos originários da bela província situada logo a sul do mítico Kwanza), tem tudo para ser kaluanda. Ou será que os kaluandas foram buscar lá mais abaixo a sua tão célebre idiossincracia? Pouco importa, passemos aos factos.
Um dia o Tiago festejou aniversário. Antes de entrar na crise da meia idade de que falam os psicólogos, resolveu convidar amigos para a sua casa, mesmo em tempo de apertos financeiros e outros em que vivemos eternamente atascados. Não seriam mais que trinta pessoas, sequiosas como nós somos, capazes de esvaziar qualquer contentor cheio de uísque. (Aproveito a passagem para repudiar a frase assassina dum ianque que disse publicamente que os angolanos são tão incompetentes que nem seriam capazes de organizar uma bebedeira numa fábrica de cerveja. Vê-se que ele nunca esteveem nenhuma farra de óbito cá na banda.)
Estávamos na animada festa onde também se encontrava a ex-esposa e a actual de Tiago dos Santos, quando entrou a futura, isto é, aquela que já está na mira para substituir a actual, com avançados preparativos de que conhecemos os detalhes mas não vamos revelar. Um grupo íntimo de amigos e familiares ficou nervoso, adivinhando borrasca. Concertámo-nos rapidamente, combinando estratégias no caso de... e de... Chamado ao grupo, o Tiago riu das nossas preocupações e disse que estava tudo sob controlo, não havia que estabelecer mediações ou preparar pontos de recuo, ele sempre soubera se safar de situações mais melindrosas. Francamente não acreditei. E, prevendo o pior, antecipei logo duas cervejas seguidas para no caso de a coisa dar para o torto, ser diplomaticamente expulso dali, mas já suficientemente aviado para resistir ao assalto dos mosquitos noturnos.
Oito pares de olhos não faziam mais que seguir as movimentações da sala, em particular as do nosso amigo e das três donas em causa. Nada acontecia de mal, ele desmultiplicando-seem atenções relativamente a cada uma, enchendo copos, servindo pastelinhos, tirando uma ou outra para dançar. Nós só bebíamos, nem nos atrevíamos a qualquer distração que poderia ser fatal no caso de ser necessária intervenção urgente para apaziguar ciúmes mais exaltados. Até porque conhecemos as fúrias repentinas que assaltam as nossas donas quando se sentem espoliadas, onde separte o verniz da contençãoe tudo salta cá para fora. Com inteira razão, teremos de compungidamente reconhecer. Mas até ali tudo corria bam, com o Tiago dos Santos a controlar com perfeição a situação, fazendo de impecável anfitrião.
Toca o telefone e um de nós foi atender. Ouviu o que disseram do outro lado do fio, voltou para o grupo tremendo. “A Tina telefonou do aeroporto, vem a caminho.” Ficámos literalmente em pânico. A Tina é uma namorada do Tiago, mulata benguelense, com quem ele dá umas escapadelas quando vai à terra das acácias rubras, o que, diga-se de passagem, é muito frequente. Particularmente eu, que conheço as fúrias das mulatas da minha terra, pressenti desgraça. Agora é que ia acontecer o inevitável. Aproveitei adiantar a cerveja em dois tragos largos, para ir buscar mais uma. Talvez desse tempo para a engolir antes de estalar a bronca. Avisei a minha garina para ficar já com o saco na mão, pois a retirada teria de ser rápida, estilo filme americano, pois com garrafas e pratos a voar, ia sobrar uma lasca para algum de nós. Ela só me disse, mas esse kota não se enxerga mesmo, com os filhos todos a assistir, vai levar uma surra de quatro mulheres. Avisámos o Tiago que a Tina vinha também festejar o aniversário. Por defeito de profissão fiquei atento à reacção do meu amigo. Pestanejou, foi tudo. Logo disse, fixe, é uma miúda porreira mesmo, a festa ainda vai ficar melhor. E se postou mais perto da porta, já cheio de saudades.
A Tina veio com um bolo que tinha feito em Benguela, com quarenta velas e tudo. Tiago beijou-a nas faces antes que a outra se antecipasse, gritou minha grande amiga, vem, quero te apresentar, e lá correu a sala inteira com ela pela mão dizendo, veio de Benguela de propósito para o meu aniversário e com bolo e tudo, digam lá se não tenho amigoas de verdade. O Tiago dos Santos, radiante da vida, jum senhor, um príncipe, e nós transidos, bebendo sempre o mais rápido possível, também não íamos deixar as grades e grades ainda cheias, em riscos de se esvaziarem pelas paredes quando rebentasse a tempestade.
Pois a festa continuou, as quatro sem perceber a ligação tão íntima que tinham, todas bebendo e comendo e dançando, pois achámos que devíamos ajudar o Tiago a distraí-las e tirávamos agora as donas para a kizomba e o semba constantemente, enquanto outros ficavam de prevenção combativa. As grades foram se esvaziando, a mesa foi ficando limpa de rissóis, quitaba, doces de coco, jinguba e outras iguarias, foi depois servido o calulú e a feijoada, as conversas e as gargalhadas soltas pelo ar. E fui acalmando e começando a acreditar em milagre. Só que tinha bebido depressa demais e tudo ia ficando naquela quietude anunciadora das grandes bebedeiras.
A festa terminou da melhor maneira, as quatro senhoras bem bebidas, agarradas ao Tiago que só ria, nunca fora tão acarinhado em aniversários anteriores. Quando saí, disse para ele: “Meu, tu merecias ser embaixador num país dificil e importante. Ou mediador numa desgraçada guerra. Mas deixa de brincar com o fogo. Pois hoje tiveste sorte.” O meu amigo Tiago dos Santos, feliz como só um Kwanza-suíno pode ficar em tais circunstâncias, respondeu: “Mano, se a vida não tiver algum risco também não tem piada.”
Como terminou a noite não sei, nem vocês tem nada com isso. Mas dois dias depois encontrei o Tiago dos Santos e ele não tinha nenhuma cicatriz, antes apresentava ar tranquilo de felicidade revisitada.
Pepetela, 1995
Crónica publicada no livro “Crónicas com fundo de guerra”, 2011
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