A Terceira Margem
Reproduzo aqui o texto do poeta português Pedro Albuquerque acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).
Estava a caminho do centro com O Mar de Vidro (2023), de Gabriela Lages Veloso, na mão. Procurava um lugar onde o silêncio rematasse a vista para Gaia. Estava do outro lado do rio, aquele tão procurado pelos turistas. Aquele onde não se encontram equilíbrios. Tudo ali cresce e acelera. “Tudo é instantâneo”, “Tudo é insuficiente”, tudo ali é qualquer coisa com significância. Talvez, por isso, a vista para Gaia fosse tão importante. Para lá de lá, apenas casario, pessoal de trabalho, rotinas e um morro onde se vislumbra a foz de um mar de vidro.
Recebera o livro por correio – este que atravessara um oceano para conhecer, quiçá, sua origem? Todo o livro é um espelho para nós próprios e “é o espaço mais fundo que existe”*. Todo o livro encontra a origem no centro do seu leitor. Agora, este livro era meu e, na minha mão, tinha O Mar de Vidro preso “nos ponteiros do relógio”.
Então, meu primeiro espanto. Diante de Gaia, sentado, falavam-me as páginas de uma outra Gaia. Da mesma? Parece-me que lhe encontrara a fonte. Coincidências? Não creio. A vida abre-se para nós com sentido de livro. Cada dia um capítulo, onde cada “palavra contém o mundo”.
Avancei pelas páginas levado à sirga pela poesia. Avancei deixando-me ir com Sophia**. No meu pensamento, este livro era o mar, era também o rio, era o meu Porto. Essa, a beleza da artista. Novamente, um bom livro é senão um espelho para nós próprios. Este livro era tido e contado segundo a minha experiência, tal como se tivesse sido escrito só para mim.
Lembro-me de folhear “A grande ilha”, o “Pombo” e o “Anúncio” como verdades de um Porto recente. De uma cidade, a par de muitas, que vê sua cultura desaparecer em prol do capital. Em vez de bairros, temos hoje hotéis. Quem se recusa a vender suas moradias, é ameaçado. Alguns vêem-nas pegar fogo. Outros, ardem dentro delas. O caminho fica, assim, livre para a demolição. O povo foge para os arrabaldes. No centro da cidade há um vazio inigualável. Só os pombos para devorar o lixo com prazer. Só os turistas para rir naquele ambiente. O “passado está sendo apagado”, “Agora, o que nos resta ver nessa / cidade são as suas margens, os / lugares negligenciados por todos.”
Levantei-me depois disto, disparado a casa. O ser humano é igual em todo o lado. Arre..! Melhor fosse que habitasse “a terceira margem”, esse infinito livro por escrever.
Pedro Albuquerque, Portugal, Setembro de 2024.
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*Clarice Lispector em Água Viva, abrindo o livro O Mar de Vidro.
**Sophia de Mello Breyner
REFERÊNCIAS:
LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.
VELOSO, Gabriela Lages. O Mar de Vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023. Disponível em: <https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/o-mar-de-vidro/>. Acesso em: 30/09/24.
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SOBRE O ENSAÍSTA: Pedro Albuquerque nasceu em Aveiro (Portugal) em 1992 e, desde cedo, mostrou apetência para as artes. Antes de escrever, já ditava seus textos e, aos 6 anos de idade, com a entrada na escola, descobriu a poesia e a declamação. Mestre em Engenharia e Design de Produto, trabalhou vários anos na área até se virar para dentro e não mais largar os livros. Em 2022, lançou ExTratos Dramáticos (poesia).
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