Heidegger, Alberto Caeiro e Ricardo Reis: convergências e divergências
Conforme Heidegger, nomear é evocar; chamar para perto. É desse modo que o autor se afasta das posturas mais tradicionais no que concerne à compreensão da linguagem.
Martin Heidegger (1889 – 1976), filósofo alemão, tem uma visão peculiar a respeito do que seja a linguagem. Alberto Caeiro e Ricardo Reis, mestre e discípulo, respectivamente, poetas, criados pelo também poeta Fernando Pessoa (1888 – 1935), têm uma maneira peculiar de escrever, embora compartilhem algumas características cruciais em seu modo de pensar o mundo e fazer sua poesia. Será possível encontrar algo do pensamento de Heidegger nos heterônimos pessoanos?
Para Heidegger, a linguagem fala. E fala por si, sem precisar ter o valor instrumental, funcional, de expressão. No entanto, ao assumir essa postura, o autor não nega o fato óbvio de que o homem se expressa pela linguagem. Na verdade, bem para além dessa análise superficial e equivocada, o que ele diz é que a linguagem possui uma essência que não pode ser submetida ao valor de expressão. A linguagem fala e essa fala precisa ser entendida no que ela própria diz, e, não, no que o homem diz sobre ela.
Para justificar essa ideia, em seu livro A Caminho da Linguagem (1959), por exemplo, Heidegger cita a poesia Uma Tarde de Inverno, de Georg Trakl (1887 – 1914), como protótipo de poema que, de acordo com o autor, em sua essência, não é a mera expressão da alma humana, mas, sim, que fala por si, e, quando o faz, evoca as coisas nomeadas para que se façam coisas no aqui-e-agora, habitando a ausência. Conforme Heidegger, nomear é evocar; chamar para perto. É desse modo que o autor se afasta das posturas mais tradicionais no que concerne à compreensão da linguagem.
Alberto Caeiro pretende voltar à pureza poética, à Natureza, onde não há divisão entre ser e coisa. No entanto, para o poeta, de modo contrário a Ricardo Reis, a Natureza não é considerada como um local ameno e nem como um refúgio para os homens cansados da vida nas cidades. Antes, é um espaço de integração entre o homem e o Cosmos. Assim sendo, percebe-se em Caeiro uma busca pela realidade essencial, que é anterior à cisão entre o homem e o mundo. Nesse sentido, da busca pela essência das coisas, nota-se certa aproximação, principalmente, entre o poeta Caeiro e o filósofo Heidegger. Assim como o filósofo, o poeta pretende alcançar as coisas como elas realmente são.
No entanto, é, também, nessa mesma busca pela essência das coisas que tanto Alberto Caeiro quanto Ricardo Reis divergem de Martin Heidegger, no sentido de que para os heterônimos pessoanos essa essência só pode ser encontrada na objetividade das coisas, diferentemente de Heidegger, que parece buscar o ser das coisas numa espécie de transcendência. Dessa maneira, nota-se que, enquanto em Caeiro e Reis não existe cisão entre a alma e o corpo, em Heidegger essa divisão existe.
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Ainda nesse sentido, é interessante salientar que, embora Caeiro e Reis concordem no que diz respeito à objetividade como maneira de atingir a essência das coisas, eles discordam do próprio conceito de objetividade. Nesse âmbito, enquanto Caeiro presta culto às sensações, principalmente à sensação da visão, que, de acordo com ele, é o órgão dos sentidos mais objetivo, porque não guarda relação imediata com a vontade, Reis prefere manter-se à beira de todas as coisas, inclusive das sensações, sem se deixar afetar por elas, sendo mais inclinado à razão, ainda que sem a ela se entregar por completo também.
Outro ponto de divergência entre Caeiro e Heidegger é que, para o primeiro, quando o homem nomeia o mundo, está dando sentido ao mundo. Nessa situação, a linguagem, aparecendo, aqui, enquanto nomeação, tem um valor instrumental para o homem. Por sua vez, conforme supracitado, para Heidegger, a linguagem fala por si; não precisa de um valor instrumental para ser, porque ela já é. Assim, cabe ao homem ouvi-la e, não, falar por ela.
A essa altura, já é perceptível que existem mais convergências entre os heterônimos de Fernando Pessoa do que desses com Martin Heidegger. De todo modo, parece que o fio condutor que perpassa os três autores é a crença numa essência a ser buscada, embora essa busca seja mais enfatizada em Caeiro e Heidegger do que em Reis, que, em detrimento da imersão nas sensações, preconizada em Caeiro, e da transcendência, presente em Heidegger, busca viver de acordo com o epicurismo e o estoicismo, equilibrando-se entre a dor, que é inerente à vida, e o prazer das coisas simples, do momento presente, que só pode ser encontrado na contemplação do que é aparente e, não, no transcendente.
Por fim, tendo sido apresentado o cerne do pensamento de Martin Heidegger acerca da linguagem, embora sem o esgotamento da temática em questão, torna-se interessante notar que tanto Alberto Caeiro quanto Ricardo Reis, dois dos principais heterônimos de Fernando Pessoa, ora convergem ora divergem das ideias de Heidegger, no que tange à linguagem e, de modo especial, à poesia. Há uma convergência no que diz respeito à crença numa essência, que se manifesta no aqui-e-agora por intermédio da poesia. No entanto, em tudo o mais, o que existem são divergências, principalmente no que diz respeito à natureza dessa essência.
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