A ideia de Deus em As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis
Lewis convidou seus leitores a imaginarem a possiblidade de Deus tornar-se leão em Nárnia, assim como se tornou homem na Terra. Esse era o “mito verdadeiro”.
Clive Staples Lewis – mais conhecido como C. S. Lewis para o grande público, e como “Jack” para os amigos mais íntimos –, nascido em Belfast, Irlanda, no dia 29 de Novembro de 1898, ensinou Língua e Literatura Inglesa na Universidade de Oxford e Língua e Literatura Inglesa Medieval e Renascentista na Universidade de Cambridge. Enquanto acadêmico, C. S. Lewis teve uma vasta produção literária, alcançando destaque, principalmente, no que dizia respeito à Literatura Medieval e Renascentista. Nesse âmbito, escreveu, como uma das principais entre suas obras, o livro Alegoria do Amor: um Estudo da Tradição Medieval (1936).
Mesmo tendo sido criado num lar que professava a fé anglicana, C. S. Lewis, durante o período da adolescência, abandonou a fé de sua família e tornou-se um ateu convicto. Vários são os fatores que contribuíram para tal postura filosófica e intelectual de Lewis, dentre os principais estão a leitura de Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.) e outros autores clássicos (os quais acreditavam que as ideias religiosas eram “meras ilusões”). Desse modo, Lewis passou a acreditar que o cristianismo era apenas mais uma entre as várias religiões existentes e que não havia motivo para acreditar que a religião cristã fosse verdadeira enquanto as outras, falsas. Aos 17 anos, Lewis acreditava que todas as religiões eram mitologias inventadas pelos homens, respondendo a acontecimentos naturais ou carências afetivas.
Tal postura racionalista de Lewis durou até o início de sua idade adulta. Nessa época, após considerar que autores modernistas, como George Bernard Shaw (1856 – 1950) e H. G. Wells (1866 – 1946), eram “superficiais” e “simples demais” para a “aspereza e densidade da vida”, C. S. Lewis, gradativamente, começou a retornar à fé cristã. A essa altura, Lewis já estava encantado pelas obras de autores cristãos, como, por exemplo, George MacDonald (1824 – 1905), John Bunyan (1628 – 1688), Samuel Johnson (1709 – 1784), John Milton (1608 – 1674), Agostinho (354 – 430), entre tantos outros. Para o autor, a literatura baseada pelo cristianismo tornou-se o “acordo com a realidade” do qual ele tanto necessitava.
Entretanto, foi apenas ao conhecer e travar uma amizade com John Ronald Reuel Tolkien (1892 – 1973) – mais conhecido como J. R. R. Tolkien, autor da trilogia O Senhor dos Anéis (1954 – 1955) e professor universitário de Anglo-Saxão, Inglês e Literatura Inglesa na Universidade de Oxford –, que C. S. Lewis, definitivamente, retornou à fé cristã.
A influência de J. R. R. Tolkien para a decisão de C. S. Lewis se deu no sentido de que Tolkien encorajou Lewis a perceber o cristianismo com a mesma capacidade imaginativa com a qual percebia os mitos pagãos. Para Tolkien, a partir da linha de pensamento de G. K. Chesterton (1874 – 1936), a mitologia pagã tinha a função de apontar para o “mito verdadeiro”, a saber, o cristianismo. Desse modo, C. S. Lewis abandonou a tentativa de entender o cristianismo a partir da razão (que o impedia de crer que a morte de um homem poderia salvar a humanidade) e passou a fazê-lo pela capacidade imaginativa.
Ainda nesse aspecto, cabe ressaltar que, antes de conhecer Tolkien, mesmo quando se voltou para a literatura de base cristã, como maneira de reconectar-se à “realidade”, Lewis considerava-se apenas um teísta. Somente depois desse encontro (com Tolkien e com o “mito verdadeiro”), Lewis passou a considerar-se um cristão, fato que influenciou, intrinsecamente, aquelas que são consideradas suas mais importantes obras literárias, a saber, As Crônicas de Nárnia (1950 – 1956).
A princípio, tendo como objetivo produzir um livro infantil de ficção fantástica, Clive Staples Lewis escreveu a obra O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, publicada no ano de 1950. Entretanto, sua produção literária, voltada para o público infantil, não parou por aí. Depois de escrever O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, C. S. Lewis escreveu mais seis livros que deram origem, então, à série de contos de Nárnia. Em ordem de publicação, as sete obras são: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950), Príncipe Caspian (1951), A Viagem do Peregrino da Alvorada (1952), A Cadeira de Prata (1953), O Cavalo e seu Menino (1954), O Sobrinho do Mago (1955) e A Última Batalha (1956).
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Segundo Alister McGrath, em sua obra A Vida de C. S. Lewis: do Ateísmo às Terras de Nárnia (2013), Lewis distinguia entre imaginário e imaginativo. Para ele, o imaginário era algo imaginado sem ter uma contrapartida na realidade; alguma coisa construída falsamente; uma realidade inventada e, portanto, uma abertura para a decepção. Já o imaginativo apontava para a mente humana buscando responder a algo maior do que ela mesma, numa luta para descobrir imagens adequadas da realidade.
Ainda nesse ponto, segundo Raquel Lima Botelho, em sua dissertação de mestrado A Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia de C.S. Lewis (2005), é importante ressaltar que C. S. Lewis compartilhava do mesmo pensamento de G. K. Chesterton, que, em seu livro O Homem Eterno (1925), distinguiu imaginário de imaginativo e propôs que o homem buscasse sua verdadeira origem, sua realidade mais profunda, nos mitos. Propôs também que as literaturas fantásticas guardavam mais verdades universais acerca da existência humana do que a ciência moderna. O conhecimento de Lewis da obra de Chesterton foi intermediado por Tolkien, já adepto da teoria “chestertoniana”.
Desse modo, Lewis passou a acreditar que as mitologias (ricamente presentes em As Crônicas de Nárnia) faziam parte da capacidade imaginativa do homem e, por isso, tinham o poder de transcender os limites da razão, facilitando, assim, uma apreensão mais profunda da realidade. Nesse sentido, Lewis concebia Nárnia como um mundo imaginativo, não um mundo imaginário. Para o autor, Nárnia representava uma oportunidade de explorar questões filosóficas e teológicas (como a origem do mal, a natureza da fé, o desejo humano de Deus, etc.) usando a imaginação como forma de acesso a reflexões sérias.
Ainda de acordo com Alister McGrath (2013), Lewis desafiou seus leitores a entrarem num mundo de suposições. Nárnia é um mundo de suposições filosóficas e teológicas a partir do qual o leitor deve se perguntar o que aconteceria caso Deus decidisse encarnar-se num mundo mágico; como seria esse mundo. Lewis convidou seus leitores a imaginarem a possiblidade de Deus tornar-se leão em Nárnia, assim como se tornou homem na Terra. Esse era o “mito verdadeiro”, conforme também acreditavam Chesterton e Tolkien.
Ademais, segundo Raquel Lima Botelho (2005), é possível encontrar vários aspectos semelhantes entre As Crônicas de Nárnia e a Bíblia Sagrada, numa espécie de intertextualidade. Entre vários desses aspectos, a pesquisadora destaca uma das características bíblicas atribuídas a Deus: a Graça. Por exemplo, assim como na Bíblia, em As Crônicas de Nárnia, o homem aparece como dependente de uma ação alheia a si próprio; de uma ação que cabe apenas a Deus, independentemente do que o homem faça. É a situação demonstrada quando Aslam diz às crianças que elas só chegarão à Nárnia quando não procurarem por ela.
Por sua vez, Emanuel Ernandes Pereira de Lira, em seu texto O Sagrado e a Intertextualidade Bíblica em “As Crônicas de Nárnia”, de C. S. Lewis (2011), também apresenta vários aspectos semelhantes entre As Crônicas de Nárnia e a Bíblia Sagrada. Um desses aspectos é o fato de os seres humanos, nas crônicas de Lewis, serem retratados como filhos de Adão e Eva. Assim como na narrativa bíblica houve a necessidade de Cristo morrer e ressuscitar para “pagar o preço” pelo pecado presente no mundo desde Adão e Eva, Aslam precisou morrer e ressuscitar para redimir Edmundo de seu pecado. Desse modo, Aslam compartilha com Cristo a missão redentora; Aslam é para Nárnia o que Cristo é para a Terra.
As Crônicas de Nárnia, após mais de meio século de suas publicações, hoje, fazem parte do cânone da literatura clássica e ainda cativam públicos de todas as idades, em várias partes do mundo, desenvolvendo tramas que abordam, de forma fantástica, batalhas épicas entre o bem e o mal, utilizando-se de elementos da mitologia grega, latina e nórdica – entre outros elementos mágicos e ficcionais – mesclados a alguns aspectos religiosos judaico-cristãos. Ademais, pode-se dizer que, assim como O Senhor dos Anéis, de Tolkien, As Crônicas de Nárnia constituem-se como parâmetros para todas as outras obras de ficção fantástica produzidas na atualidade.
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