Comentário

O Supremo e as moscas

Da leitura dessa obra magnífica, premiada com o Cervantes de 1989, ficam a impressão causada pelas obras-primas e a lição sobre a finitude dos ditadores

Antonio Carlos Lima/Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15
O escritor paraguaio Augusto Roa Bastos (augusto roa)

São Luís- Quando a mosca entrou no quarto fechado e começou a zumbir ao redor de sua cama, convenceu-se de que chegara o fim. Ele, que vira tanta gente morrer, muitos executados a seu mando, estava consciente, naquele instante, de que outras moscas viriam, “atraídas pelo fascínio da morte”. Seu corpo exalava o odor que, nessas horas do adeus, convoca dípteros como a mosca azul e a varejeira para o derradeiro banquete.

Aos setenta e quatro anos, prostrado numa cama, José Gaspar Rodriguez de Francia (1766-1840), Secretário da Junta Revolucionária, Cônsul, Ditador Temporário e, por último, Supremo Ditador Perpétuo da República do Paraguai, estava morrendo. E, com ele, o Reino do Terror que, durante vinte e quatro anos, implantara com mão de ferro no país.

A vida aventurosa, heroica em alguns momentos, criminosa em tantos outros desse advogado, revolucionário e ditador que defendeu e ajudou a promover a Independência do Paraguai, consta dos livros de história, que destacam quase sempre o seu papel na emancipação de sua pátria.

Mas ninguém, além do escritor Augusto Roa Bastos (1917-2005), seu compatriota, foi tão longe na tentativa de retratá-lo por inteiro, examinando seus escritos, escarafunchando seus documentos e tudo o que sobre ele se escreveu, mas, sobretudo, vasculhando a sua alma, penetrando seus desvãos e sua mais íntima natureza, o que logra numa obra monumental: o romance Eu, o Supremo (Paz e Terra, 400 pág. 1977).

O livro começa pelos instantes finais da vida do ditador, quando este recebe um documento apócrifo, no qual, ele próprio estaria ordenando que, após a morte, seu cadáver fosse “decapitado, a cabeça posta em um mastro por três dias na Praça da República, para onde se convocará o povo ao som incessante de sinos”.

A caçada aos supostos autores do panfleto, que resulta em assassinatos de inocentes, perpassa todo o romance. A voz onipresente do Supremo, abruptamente intercalada por outras vozes e pela transcrição de Circulares Perpétuas, textos de um Caderno Particular, documentos autênticos e apócrifos, notas de rodapés, reflexões filosóficas e intervenções do Compilador, como Roa Bastos se apresenta, o ditador narra a sua vida, a chegada ao Poder e a conspiração dos adversários para destroná-lo. Na câmara em que se isola numa espécie de fortaleza, tendo por única companhia o fiel de feitos, ele se entrega ao desvario retórico, verdadeiro delírio, em que repassa a história do Paraguai, que confunde com sua história pessoal.
Como Supremo Ditador Perpétuo, perseguiu o que considerava o maior problema do novo país: a corrupção. A bandeira serviu para concentração da força, o que o leva a controlar toda a vida da nação, acima das instituições.

Extinguiu o Exército, montou uma milícia patriótica que controlava a vida de todos. Expulsou, prendeu ou matou milhares de criollos que preferiam a ordem anterior. Contra os inimigos externos, fechou as fronteiras, impedindo a navegação e o comércio pelo rio Paraguai. Isolou completamente o país e desenvolveu modo próprio de sobrevivência durante as décadas finais de sua ditatura.

Diferentemente de outros ditadores latino-americanos, era um homem de luzes. Estudou Teologia e Direito na Universidade de Córdoba, falava francês e inglês e citava os grandes pensadores e escritores do Iluminismo, aos quais chama de “compadres”. Desconhecia parentes e amigos e jamais se locupletou do poder em benefício próprio.

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Augusto Roa Bastos escreveu o livro no exílio, em fuga de outra ditadura, a de Alfredo Stroessner (1912-2006). Da leitura dessa obra magnífica, premiada com o Cervantes de 1989, com edições esgotadas no Brasil (só encontráveis em sebos), ficam com o leitor a impressão causada pelas obras-primas e a lição sobre a finitude de todos os autocratas, mesmo os mais tirânicos.

Num país sem instituições, como era o Paraguai dos seus inícios, o jeito foi aguardar a chegada do fim definitivo do ditador, anunciado pela mosca impertinente. Mas em democracias consolidadas, como se espera seja a do Brasil, os candidatos a tiranos são abatidos no nascedouro, com o advento, a qualquer hora, da varejeira do impeachment ou da mosca famélica das urnas, ambas fatais para pretensões de mando eterno e poder supremo.

Antonio Carlos Lima é jornalista e escritor. Email: antoniocglima@uol.com.br

Trecho do livro

“De que me acusam estes anônimos papelórios? De ter dado a este povo uma pátria livre, independente, soberana? O que é mais importante do que ter-lhe dado o sentimento de pátria? De tê-la defendido desde seu nascimento contra os embates de inimigos de dentro e de fora? Disso me acusam? Queima-lhes o sangue que haja restaurado o poder do comum na cidade, nas vilas, nos povoados; que haja continuado aquele movimento, o primeiro verdadeiramente revolucionário que explodiu nesses continentes, antes ainda que na imensa pátria de Washington, de Franklin, de Jefferson; inclusive antes da Revolução Francesa. Não me preocupa o tipo de capacidade que possui um homem. Unicamente exijo que seja capaz.

Aqui antes da Ditadura Perpétua, estávamos cheios de escreventes, doutores, homens cultos, não de cultivadores, agricultores, homens trabalhadores como deveria ser e agora é. Aqueles cultos idiotas queriam fundar o Areópago das Letras, Artes e Ciências. Pus-lhes o pé em cima.

Tornaram-se pasquineiros, panfletários. Os que puderam salvar a pele fugiram. No estrangeiro fizeram-se piores ainda. Convulsionários vaidosos, viciosos, ineptos, não têm lugar em nossa sociedade camponesa. Que podem significar aqui suas façanhas intelectuais? Aqui é mais útil plantar mandioca ou milho do que pintar papeluchos sediciosos; mais oportuno desbichar animais atacados pelo carrapato do que carrapatear panfletos contra o decoro da pátria, a soberania da República, a dignidade do governo. Depois virão os que escreverão pasquins mais volumosos. Chamarão a isso livros de história, novelas, exposições de feitos imaginários adubados ao gosto do momento ou de seus interesses. Profetas do passado contarão neles suas inventadas patranhas, a história do que não aconteceu”.

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