São Luís que não dorme

Figuras que vagam na madrugada e histórias de quem passa a noite na via

Vigilantes passam a madrugada acordados na Rua Grande e observam o movimento pelo local; idosa pregando o Evangelho está entre as figuras

Jock Dean / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h55

[e-s001]Algumas lendas de São Luís dão conta de que algumas figuras fantasmagóricas surgem pelas ruas da cidade durante a madrugada. Uma delas é a lenda da Carruagem de Ana Jansen, que foi dona de muitas propriedades na cidade, uma delas um imóvel localizado na Rua Grande. Não, O Estado não cruzou com ela durante a madrugada de quinta-feira, dia 27, mas encontrou algumas pessoas bem peculiares vagando pela via praticamente deserta.

Algumas delas pararam para contar suas histórias, reais ou fictícias. Nas proximidades da Praça do Pantheon, o silêncio da madrugada no Centro era quebrado pelo reggae alto que soava de uma barraca. Na noite de quarta-feira, dia 26, houve um clássico do futebol brasileiro, Vasco e Flamengo, pela Copa do Brasil. Algumas pessoas pararam na barraca de João Pereira Serra para acompanhar a partida e continuaram após o jogo, embalados pelo reggae e animados pela cerveja gelada. "Eu não costumo ficar até tão tarde. Geralmente, vou embora às 23h. Mas, por causa do jogo e do movimento, fui ficando até um pouco mais", disse.

Enquanto isso, na Rua Grande, o principal movimento da madrugada é dos garis que estão varrendo a sujeira que lojistas, vendedores ambulantes e clientes produziram ao longo do dia. Mas eles não ficam tão sozinhos assim. Enquanto O Estado acompanhava o trabalho dos garis nas proximidades do prédio do antigo Colonial Shopping, observamos de longe uma idosa se aproximar, caminhando sozinha, lentamente, com certa dificuldade, sustentando-se em sua bengala, enquanto carregava uma sacola plástica. O que havia dentro não soubemos. Tentamos falar com ela, que se recusou, descendo para uma das transversais da via após nossa aproximação. Tempos depois, rodando pelas ruas do Centro, a vimos na companhia de algumas pessoas nas proximidades da Praça da Alegria.

[e-s001]Idosa - E foi da Praça da Alegria, caminhando pela Rua de Santaninha, uma das transversais da Rua Grande usada pelo comércio informal, que vimos outra senhora caminhando com dificuldades, carregando uma caixa de papelão aparentemente pesada. Ela fez diversas paradas ao longo do percurso, colocando a caixa no chão ou sobre outra superfície, enquanto descansava os braços. Uma dessas paradas foi no canto da Santaninha com a Rua Grande. Ela colocou a caixa sobre uma das barracas do comércio informal, que ficam vazias ao longo da noite e madrugada. Encostadas nas paredes e sem mercadorias, elas revelam a paisagem escondida das transversais ao longo da via.

Ela percebeu a presença de O Estado e se esquivou para trás de uma das barracas. Fomos até ela e tentamos puxar papo. Depois de alguns minutos insistindo, a mulher com a caixa, Marlene, foi esse o nome que ela informou, começou a conversar conosco e contar o porquê de estar na Rua Grande sozinha à 1h. "Moro aqui perto e fui buscar uma encomenda, mas já estou indo para casa", disse.

Mas antes de aceitar conversar, ela insistiu que queria ir à sua casa se arrumar para a entrevista. Tentamos convencê-la do contrário, dizendo que era arriscado uma senhora idosa - ela disse ter mais de 60 anos - ficar caminhando sozinha pela rua tão tarde da noite. "Eu tenho a arma mais poderosa de todas. Quem faz o mal anda com Deus ou com o Diabo? Quem rouba anda com Deus ou com o Diabo? Quem mata anda com Deus ou com o Diabo? Eu ando com Deus", comentou.

Aos poucos, ela revelou ser evangélica, da Igreja Mundial, e começou a fazer relatos de obras que Deus teria operado em sua vida. Todas um tanto quanto mirabolantes, como quando encontrou R$ 600,00, que lhe possibilitou visitar a Cidade Mundial, megatemplo da Igreja Mundial localizado em São Paulo. Ainda segundo ela, na cidade ela achou uma câmera fotográfica em um metrô, com a qual pôde registrar sua estada na cidade. "Quando quero lembrar-me dessa viagem, pego a máquina e fico olhando as fotos", contou.

Deus - E ao longo dos mais de 30 minutos em que conversou com O Estado, dona Marlene falou da importância de Deus na vida das pessoas e por que todo mundo deveria frequentar os cultos em sua igreja. Enquanto falava sobre o Senhor, lembramos-lhe que era melhor voltar para casa, era tarde e o centro da cidade é perigoso durante a noite. Ela recusava, sempre lembrando que não teme a madrugada já que tem Deus ao seu lado. Perguntamos se não havia alguém que pudesse buscar a tal encomenda e lhe fazer companhia. "Na minha casa, tem muitos anjos. Eu nunca estou sozinha", disse. Após nossa insistência, ela foi embora carregando sua caixa sem revelar o conteúdo.

Continuamos ali observando os garis subirem pela rua fazendo seu trabalho. Algum tempo depois, voltamos a ver dona Marlene, dessa vez sem a caixa, andando entre os garis. A certa altura da via, voltamos a nos aproximar e ela imediatamente se escondeu atrás de um poste. Perguntamos, então, a uma das garis o que aquela senhora fazia ali. "Ela está pregando. Está nos falando passagens bíblicas e dizendo que devemos procurar Deus", informou Alexandra Lopes Gonçalves. Afastamo-nos, deixando dona Marlene à vontade, enquanto a observávamos sair das sombras novamente e ganhar a rua, voltando a falar de Deus com os garis.

[e-s001]Vigilantes - Um pouco mais à frente, no cruzamento da Rua Godofredo Viana, dois vigilantes não imaginavam, mas certamente receberiam a visita se dona Marlene ao longo daquela noite. Daniel Costa, 27 anos, e Edivaldo Silva, 38, há sete anos guardam as mercadorias dos vendedores informais que trabalham naquela transversal. "Além de vigiar as mercadorias, a gente guarda algumas lojas aqui. Ficamos de 19h até 7h, quando os camelôs chegam para armar suas bancas novamente", informou Edivaldo Silva.

Antes, eles chegavam por volta das 19h para transportar todas as mercadorias para um depósito nas proximidades. Depois, às 3h, eles começavam a levar tudo de volta para a rua, para que os comerciantes as encontrassem quando chegassem. "Mas era muito cansativo. Então, decidimos passar a noite toda aqui. A gente se reveza dormindo, para não deixar os produtos desprotegidos", contou Daniel Costa.

Na transversal da última quadra da Rua Grande, eles passam a maior parte da noite sozinhos. Quando os garis começam o trabalho na área já passam das 4h. Para passar o tempo, uma TV de 14 polegadas e a conversa são as únicas distrações. Quanto à insegurança, eles contam principalmente com a fé em Deus. "Já aconteceu de alguns usuários de droga mexer com a gente. Mas não é tão comum, apesar de ter muitos deles pelo Centro. A gente vê muita coisa aqui ao longo da madrugada, mas prefiro não falar para não sofrer represálias", disse Edivaldo Silva.

A DEMOLIÇÃO DA IGREJA E A LENDA DO PRÉDIO MAL-ASSOMBRADO
[e-s001]A Rua Grande é conhecida pelo seu comércio intenso, mas nesse local ficava uma igreja histórica, que já não existe mais: a de Nossa Senhora da Conceição dos Mulatos (foto 1), sede paroquial desde 29 de agosto de 1805. Em 1939, por motivos urbanísticos, e segundo conta a tradição popular, em razão da parede lateral da Igreja que avançava além da calçada, invadindo o traçado da rua, e pela passagem do bonde rente ao paredão, que causava muitos acidentes, alguns fatais, a igreja foi demolida. Nos anos 1960, em seu local, foi construído o Edifício Caiçara, um prédio residencial.

[e-s001]Segundo documentos catalogados no escritório do síndico Dílson Tavares, o arranha-céu tem 10 pavimentos, com 48 apartamentos, e as paredes da frente e laterais revestidas de pastilhas, em uma construção moderna sobre colunas, pilots e estrutura de concreto armado. O prédio ganhou conotação de amaldiçoado, por ter ocorrido nele, logo nos primeiros anos após sua inauguração, três suicídios, segundo levantamento da Fundação Municipal de Patrimônio Histórico (FUMPH) de São Luís. De acordo com moradores, além da igreja, havia um cemitério no local, o que alimentou ainda mais as lendas urbanas sobre o prédio. A primeira moradora do edifício foi a assistente social Maria Lígia Oliveira, no apartamento 301, e seu irmão, o funcionário público Luiz Gomes de Oliveira, foi o primeiro a cometer suicídio no local, nos anos 1970.

FATOS SOBRE A HISTÓRIA DA RUA GRANDE
- Em 1640
, por ocasião da invasão dos holandeses, a Rua Grande já tinha 4 quadras e alguns edifícios - indo até a Rua da Cruz (também chamada Sete de Setembro), e já se configurava como caminho de acesso ao interior da ilha.
- Já em 1866 existiam 178 casas construídas ao longo desta via.
- Em 1912, a Rua Grande tinha linha de bonde em toda sua extensão, indo até o Anil, e outra que cortava ligando o Largo dos Remédios até a Quinta do Matadouro (São Pantaleão), pelas ruas Rio Branco, do Passeio, e a atual Rua do Norte.
- Durante a administração de Mauro Fecury, em 1979, houve a segunda tentativa de fechamento da Rua Grande e algumas das suas transversais, para o trânsito de veículos. A primeira tentativa foi feita durante a gestão do major Pereira dos Santos, na década de 1950, abrangendo o trecho entre a Praça João Lisboa e a Rua da Cruz.
- O Decreto de Tombamento Estadual, de 1986, de uma área de 160 hectares, no Centro Histórico de São Luís, abrangeu praticamente toda a Rua Grande.

Fonte: São Luís é Rua Grande: Um Passeio no Tempo, de Paulo Melo de Souza (1992).

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