Crônica

As Metamorfoses do Ovo

Sebastião Moreira Duarte

Atualizada em 11/10/2022 às 12h58

Com um acolhimento alegre, que não significa fácil concordância, torno a ler quatro dos onze recados que alguns “leitores dialogantes” – como se diz um deles – fizeram a gentileza de me enviar, a propósito da curta conversa que puxei aqui na semana passada. Na palavra do mais zangadinho deles, resumo o que pretendem dizer os meus amigos: “Não é o spleen de Paris, está bem. Mas não está direito você incluir a Ciência [com letra maiúscula] na sua lista de ‘malas vazias’, coisas ou pessoas. Anote o equívoco.”

Respondo ao maiúsculo puxão de orelhas com a paciência com que trataria do problema o meu antigo vizinho Cândido Cordeiro, mestre-escola aposentado, sempre suave e balsâmico no trato das relações humanas.

Coincidência das grandes, sou ajudado pela reportagem de uma revista semanal, que traz a surpresa em que ninguém apostava: o ovo, virado e revirado como alimento humano, condenado pelos malefícios do colesterol, é agora exaltado pelos benefícios do colesterol. Tudo por ordem da ciência (com minúscula mesmo). Está lá o “veredicto” do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos: “Não há evidência disponível que mostre alguma relação significativa entre uma dieta com colesterol e os níveis de colesterol sanguíneo. O consumo excessivo de colesterol não é motivo de preocupação.”

Não sei bem por quê, sempre tive particular consideração pelo ovo, acho que desde quando, ainda garotão, li aquela divertida sequência d’O Alienista, de Machado de Assis: “Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.”

Quem dizia isso era um pobre diabo que narrava às paredes a própria genealogia. Mas deve haver alguma sapiência nessa loucura. Pelos mitos mais antigos, o mundo surgiu de um ovo, de que restaram o céu e a terra como cascas abertas. Aliás, o que foi o Big Bang, mais que um possantíssimo ovo explodido?

Os romanos, notáveis engenheiros, deviam ter conhecimento disso, quando, sem contarem com a força do ferro e do concreto armado, inspiraram-se na geometria do ovo para inventar a arquitetura dos arcos em suas construções.

Também sabedor disso há de ter sido meu saudoso amigo Dr. João Mota de Queiroz, o Dr. Jivago de Coroatá, como lhe chamávamos mais de próximo. Quando o visitei, há 11 anos, para uma entrevista que serviria a um projeto familiar, o afamado facultativo e folclórico militante políticos das Oposições me explicava, do alto de sua “cabeleira alvescente” (Dr. Mota enxergava pepitas de fogo nas palavras raras), que a sua pose setuagenária e sempre cativante se devia ao hábito de diminuir de um, todo dia, a produção de ovos no Brasil, por onde ele prometia a si mesmo, autorizado pela medicina que exercia há décadas, que muito tardaria em bater às portas da eternidade. É certo que, pouco depois, despachou-se na viagem derradeira, mas esse é o preço que pagamos pela vida que ganhamos sem nenhum merecimento.

E nós continuamos afirmando que o sol se põe, como se fosse um ovo de dimensões cósmicas, posto por uma galinha um tanto maior que um dinossauro, ao fim de cada dia.”Sebastião Moreira Duarte

Não falarei do café, que passou pela mesma gangorra de reputação, entre os anos 70 e 90 do século passado. Vi, nos States, gavetas inteiras boicotadas nos supermercados, contendo o produto proibido. A ciência (com minúscula, pois não?) ensinava que o café entupia as coronárias. Depois, muita gente foi fazer fila para comprar café, fortificante dos músculos cardíacos.

E quê que há? A lei da gravidade foi descoberta há pouco mais de três séculos. O argumento de Galileu de que é a terra que gira em torno do sol ainda não chegou à casa dos 400 anos. E nós continuamos afirmando que o sol se põe, como se fosse um ovo de dimensões cósmicas, posto por um galinha um tanto maior que um dinossauro, ao fim de cada dia.

Claro que não vamos abolir a lei da gravidade, como queria aquele deputado mineiro, nem vamos condenar de novo a Galileu, até porque não teríamos muito grande proveito: ele era teimoso como um fundamentalista juramentado.

Mas o que fica evidente, meus irmãos, é que as afirmações da ciência (minúscula, outra vez) não são, mas são. São, mas não são.

A favor da ciência, reconheçamos seu compromisso com a verdade e sua humildade em desdizer-se e refazer-se. Outras “malas vazias” correm mundo, crepitantes, arrogantes, falsas, enfatuadas, feias, frias.

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