O poeta Nauro Machado entregou-me um volume de crônicas, publicadas despretensiosamente ao longo de várias décadas, e na sua humilde autocrítica, perguntou-me: "Vale a pena publicá-las em um livro?"
Como quem recebe pérolas de uma criança que vê nas pérolas apenas bolinhas de gude sem nenhum encantamento além do lúdico descartável, li-as, para reconhecer, da primeira à última palavra, que eu era um privilegiado em poder vislumbrar, com espanto e admiração, um tesouro de nossa literatura, quase perdido no mofo do tempo e da inexistência crítica de nossa província literária.
Província – O Pó dos Pósteros, esse lado prosaico pouco vislumbrado do nosso maior mestre da palavra, Nauro Machado, é um acontecimento literário de rara preciosidade a dar ao já consagrado poeta uma outra dimensão inventiva à sua usina verbal. Neste livro, nosso titânico Prometeu poético empresta sua luz e gênio à construção de uma obra epifânica, mosaicos sobrepostos de crônicas originalíssimas que, no painel final chamado Província – O Pó dos Pósteros, desvela-o na mais completa radiografia, quer do artista, quer do homem Nauro, um escritor conhecidamente soturno, arredio e enigmático.
Afrânio Coutinho definiu a crônica como sendo um texto jornalístico que quer ser literatura. Pois bem, o Nauro, com sua particularíssima percepção do cotidiano e das pessoas que coexistem com ele o seu tempo e espaço, eleva esse gênero literário, aparentemente efêmero, a um patamar de pura arte, transfigurando o que seria volátil em eterna e encantatória linguagem.
E não é uma alquimia fácil tecer a crônica com fios de genialidade a ponto de torná-la uma substância literária tão rica em códigos, ritmos e até metáforas capazes de atingir, em essência e densidade artística, o ensaio, o conto, ou mesmo a poesia (posto que, em Nauro, nesta obra-prima, não raro, prosa e poesia se interpenetram harmoniosamente).
Para explicar essa catarse de beleza verbal em O Pó dos Pósteros, só mesmo navegando, com a bússola do incognoscível, no mar dissoluto da alma naurodiana, onde uma complexa psicologia existencial e um caudaloso conhecimento do humano, de suas esferas lineares ao calcanhar faz desse nosso mestre vivo da palavra, um prestidigitador de nossa língua portuguesa, quer na prosa, quer na poesia.
Quem tiver, como eu, o privilégio de ler esse Província – O Pó dos Pósteros, do nosso poeta maior Nauro Machado, vai se espantar com uma revelação jamais nos ofertada em toda sua produção poética: vai descobrir o homem e o poeta na sua completude, com sua herança de erudição e sua alma abarrotada de amigos, admiradores e admirados, mortos e vivos, com ele, Nauro, a compor um vitral iridescente da mais inebriante narrativa de um tempo a testemunhar a presença de um artista ilhado, mas solidário com a melhor e mais eterna literatura universal.
Junte-se a tudo isso, São Luís inteira, e de uma forma inextrincável e xifópaga, no coração do poeta a suportá-la na sua relação de amor e espezinhamento, onde a província esmaga o gênio, e o gênio, na sua dor ou via-crúcis, canta os crepúsculos, a gente e os horizontes que nela o acorrentam na mais divina penitência de toda uma vida, exotérico memorial de um longo tempo.
Quem lê Província – O Pó dos Pósteros não lê só literatura instigante e iluminada, lê a alma e a vida do nosso mais completo escritor contemporâneo, que nesta obra-prima alinhava crônicas que transcendem o gênero para imortalizar-se na mais refinada arte literária. E no final, como o titânico Dante, com seus infernos, purgatórios e paraísos, além da crônica de seu tempo, faz a crônica de si mesmo, uma odisséia humana particular e, no entanto cósmica, pérolas eternas aos pósteros.
*Escritor e membro da Academia Maranhense de Letras
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