Allan Kardec Duailibe Barros Filho
O ambiente era de intenso trabalho. Estava isolado em uma caverna, não muito longe das colinas de Golan, na região de onde viriam surgir mais tarde as doutrinas judaico e cristãs. Várias ferramentas espalhadas pelos armários, pelas mesas e pelo chão. Ele suava. Ainda que o cansaço apelasse, ele não se rendia! Estava eufórico, afinal tinham sido anos a fio de pensamento intenso e de procura daquilo que ele tanto buscara. Mais alguns retoques e conseguiria!
A euforia fazia-o recordar cada passo de sua trajetória. Reconhecia que há poucas gerações havia tido um ancestral que era o primeiro homem a respirar na face da terra, a quem todos chamavam de Adão. Sabia que Deus o havia expulso de um longínquo paraíso, ao qual os parentes se referiam pintando em cores de um local de paz e de descanso.
Ele queria ser diferente, ser uma lenda de quem todos falariam com respeito. Ser reconhecido por sua inteligência e sagacidade. Por sua grandeza na criação e no pensamento. Gostaria, no fundo, de imitar o próprio Criador, com quem nunca tinha se encontrado, mas por quem tinha enorme respeito, devido à grandeza da sua obra. Queria se eternizar, mas contribuindo para a obra de Deus.
Ele sempre fora mais dinâmico, ao contrário da calma de seu irmão mais velho, alcunhado de Oriente. Por serem parecidos fisicamente, havia recebido o nome de Ocidente. Mas as similaridades terminavam aí. Oriente vivia meditando. Ocidente, pensando em como construir seu nome. Seu irmão gostava de leituras do passado. Já ele, visionário, pensava em remodelar o mundo de acordo com sua visão.
Foram longos anos de raciocínio aliado a testes com vários elementos e diferentes tipos de matéria. A intenção do Ocidente era construir algo que estivesse sempre presente na vida de seus descendentes. A idéia de modelar aquela criatura tinha vindo da observação, como acontece sempre com as grandes idéias. Ele percebeu que, à luz do sol, sempre aparecia grudada a qualquer homem, a sombra. Bastava um pouquinho de luz e lá aparecia ela, automaticamente. Era involuntário e simples, por isso, belo - pensava.
Ocidente então resolveu fazer a sua versão de sombra. Mas ele não queria que fosse algo material. Tinha de ser tipo um espírito que acompanhasse a pessoa a qualquer lugar. Mas que não precisasse de luz para aparecer. Afinal, luz é matéria! - raciocinava - e queria algo abstrato, elegantemente abstrato.
Lembrou-se das estórias de seu antepassado, da falta que ele cometera, e por isso tivera de abandonar o paraíso. E foi assim que encontrou a chave para sua idéia: sabia que qualquer descendente de Adão está propenso ao erro. Pode sucumbir facilmente à tentação. Aí está a chave: a falta, o erro! Isto será o que o sol é para a sombra - discursou.
Resolveu então construir uma criatura que acompanharia para sempre todos os seus filhos e netos. Ela teria uma característica fundamental: acusar toda e qualquer falta. Mas sua manifestação seria complexa. Ela alcançaria os filhos do Ocidente tanto de forma tênue, em algumas pessoas, como de forma devastadora, em outras. Sua missão era não deixar erros sem responsável. A criatura estaria presente tanto admoestando uma pessoa, quanto fazendo com que uns apontassem os erros alheios.
Justiça! - concluiu - criei uma forma de justiça interna, que independerá de controle externo. O pobre Ocidente imaginava que estava construindo uma forma de os homens voltarem ao Criador, e ao paraíso perdido. Mas não imaginou que esse monstro acabaria como responsável pelo suicídio de inúmeros descendentes seus, e que esses mesmos descendentes usariam essa criatura para disseminar o ódio, o ranço, a discórdia entre si.
Ocidente olhou para a pequena criatura, que deslizava tranqüilamente entre seus dedos e a engoliu. Sua intenção, afinal, era de que todos os seus netos e bisnetos a tivessem também circulando em seu sangue. Assim nasceu o que hoje está presente em nossas veias e se chama Culpa.
Professor da UFMA
E-mail: allan@dee.ufma.br
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