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Gaia em Alerta
Naiara Valle é bióloga com vasta experiência na Amazônia Legal em conservação, restauração e políticas públicas. Preside o Instituto Ecos de Gaia e comanda viveiros, SAF, mecanismos de carbon
GAIA EM ALERTA

Descarbonizar? Só depois da próxima guerra

A descarbonização não é apenas uma pauta ambiental. Trata-se de uma questão econômica e de sobrevivência social.

Naiara Valle

Atualizada em 02/09/2025 às 17h07

O mundo segue intensificando pressões sobre os sistemas naturais, já em estado crítico de estresse. Esse desequilíbrio nasce de um modelo econômico que insiste em consumir além da capacidade de regeneração da Terra. O último relatório do IPCC (2023) alerta que, sem cortes profundos e imediatos das emissões nesta década, nos aproximaremos do ponto de não retorno — momento em que apenas restarão medidas de adaptação, muito mais custosas e desiguais.

A descarbonização, portanto, não é apenas uma pauta ambiental. Trata-se de uma questão econômica e de sobrevivência social. Ao derrubarmos florestas, liberamos carbono estocado, reduzimos a capacidade de captura pela fotossíntese e ampliamos a instabilidade climática. Os reflexos são claros: enchentes e secas extremas que desorganizam cidades, perda de safras que ameaça a segurança alimentar e colapsos nos ecossistemas aquáticos que sustentam a pesca de milhões de pessoas.

Nesse contexto, a metáfora é inevitável. Enquanto trilhões de dólares são drenados para financiar guerras, faltam recursos para financiar a transição energética e fortalecer a resiliência climática. Apenas em 2023, os gastos militares globais ultrapassaram US$ 2,4 trilhões (SIPRI), montante suficiente para multiplicar esforços de mitigação e adaptação. A escolha entre financiar conflitos ou investir em soluções climáticas revela a contradição estrutural do nosso tempo.

Os conflitos internacionais reforçam esse impasse. A guerra na Ucrânia desorganizou cadeias globais de energia e alimentos, levando a União Europeia a ampliar em mais de 30% o consumo de carvão em 2022 (IEA). Já a guerra em Gaza escancara a ausência de solidariedade em um momento em que a humanidade deveria priorizar cooperação. Em paralelo, países anunciam metas de neutralidade de carbono para 2050 ou 2060, mas seguem expandindo petróleo e gás. O discurso pela descarbonização está divorciado da prática.

As promessas feitas nas COPs continuam distantes da realidade. Recursos para financiamento climático, especialmente do Norte global para o Sul global, chegam em escala insuficiente e frequentemente sob a lógica de novos vínculos de dependência. O resultado é a perpetuação de desigualdades históricas e a postergação de medidas efetivas.

As consequências dessa contradição já estão em curso. A inflação global é pressionada não apenas por dinâmicas econômicas tradicionais, mas pelos impactos das mudanças climáticas sobre a agricultura e a energia. Regimes de chuva cada vez mais imprevisíveis afetam colheitas, encarecem alimentos e comprometem cadeias produtivas. A demanda energética cresce em ritmo acelerado, pressionando ecossistemas em uma lógica irreal de crescimento infinito em um planeta finito.

O custo da inação é coletivo. Mais pressão sobre os ecossistemas, maior frequência de eventos extremos, avanço da fome global e erosão das condições mínimas de estabilidade social. Nenhuma sociedade, por mais rica ou poderosa, permanecerá ilesa. A ciência precisa ser bússola da política. Ignorá-la significa negar as leis naturais e existir de forma irracional. As atividades sociais e econômicas que hoje estruturamos produzem um passivo insustentável para as próximas gerações. É nossa responsabilidade reverter essa rota antes que se fechem as últimas janelas de oportunidade. Como lembra Ailton Krenak: “Estamos adiando o fim do mundo. O que precisamos é criar outras formas de existência que não sejam predatórias”. Não podemos mais adiar o fim do mundo em nome do lucro e ao custo de vidas.


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