COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

40 anos de Democracia: entre luzes e sombras

No marco histórico dos quarenta anos da transição democrática, marcada pela eleição de Tancredo Neves e José Sarney, surge oportunamente o convite para abrirmos a agenda de debates e reflexões sobre a democracia brasileira.

Kécio Rabelo

No marco histórico dos quarenta anos da transição democrática, marcada pela eleição de Tancredo Neves e José Sarney, surge oportunamente o convite para abrirmos a agenda de debates e reflexões sobre a democracia brasileira, seus caminhos e desafios, as intempéries desse percurso — o mais longevo da história do Brasil — sem ignorar as marcas da corrosão e das tentativas de enfraquecê-la. Lançar um novo olhar sobre o tema? Talvez! Mas não apenas isso. É preciso considerar a urgência que esse debate inspira.

O que parecia fortemente consolidado como um valor intransponível do povo brasileiro viu-se ameaçado com aquele nocivo e violento 8 de janeiro de 2023. A ousadia incivilizatória, somada à veia autoritária de correntes extremistas afeiçoadas à desordem, deu provas de que, apesar de todos os avanços, ainda carecemos de proteger e efetivamente consolidar nossa jovem democracia.

Os acontecimentos daquele dia trouxeram à tona a urgente necessidade de falar sobre democracia em todos os espaços, recontar a história do Brasil e, mais ainda, reparar equívocos e distorções de narrativas que subjetivaram fatos históricos, contrapondo-se à verdade.

Aquele 8 de janeiro não pode ser visto como um capítulo isolado da nossa história recente, mas como o ápice de um movimento de verdadeira decomposição democrática que vem sendo construído há longos anos, alijando as instituições e destruindo, por dentro, as bases do Estado de Direito.

Por outro lado, constatou-se uma resposta imediata das instituições do Estado e de parte significativa da sociedade civil organizada, que reagiram com firmeza àquela tentativa mal elaborada de golpe, porém de consequências terríveis para o patrimônio material e imaterial das sedes dos poderes da República.

A democracia comporta revoltas. Se assim não fosse, contradiria sua própria natureza, sua razão de ser. No entanto, não tolera fissuras à sua própria existência. O Brasil superou as páginas de ruptura e exceção autoritária e não voltará ao tempo da barbárie e da desordem institucional. Aí está, talvez, o cerne da razão para celebrar esses quarenta anos.

 

Não que tenhamos resolvido todos os problemas e entraves, mas temos regras claras de resolução, garantidas pela solidez de uma Constituição que tem se mostrado eficaz na manutenção do Estado de Direito.

Temos feridas? Sem dúvida! Não há como afirmar com normalidade que estamos em uma democracia plena quando o principal pilar democrático — a eficácia da universalização de direitos — ainda é insuficiente. Não há, no seio da sociedade brasileira, verdadeira consciência e adesão a essa realidade.

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Somos herdeiros de uma história de genocídios, escravidões e negação de direitos, que perpetuou escancaradas desigualdades sociais. Isso não deve determinar o fim ou o enfraquecimento dos ideais democráticos; ao contrário, deve nos interpelar e desafiar, a nós e às instituições do Estado, para uma resposta imediata e proeminente a essas graves questões. Esse é, entre outros, um dos poderes sagrados da democracia: a capacidade de se autorregenerar.

Aquela tarde cinzenta que começou em 1964 e terminou em 1985 deixou traumas pessoais e sociais. Não há felicidade sem liberdade. Ao retirar as liberdades, roubaram a alegria, exilaram a esperança e fizeram chorar o futuro, que, medroso, demorou a chegar.

Os exílios são todos iguais. Na Babilônia, pedia-se aos hebreus que cantassem o canto de sua terra. Nas salas, sarjetas e tribunais, pedia-se um hino que garantisse a "Lei e a Ordem", mas canto de pássaro preso não é música, é grito. E das ruas, dos becos e ruelas, dos sindicatos, das igrejas, dos clubes de mães e de tantos outros movimentos, ensaiava-se o canto novo, aquele que, com ou sem bandeiras nas mãos, chegaria para todos, varrendo com ares de liberdade o Brasil e seu povo.

A mobilização popular foi e continua sendo a maneira mais efetiva de exercício de direitos e de consolidação da democracia. Foi por ela, pela força das ruas, que foram eleitos Tancredo e Sarney. Era a última eleição pelo Colégio Eleitoral.

Ao assumir a Presidência da República em decorrência da morte de Tancredo, Sarney chamou para si a responsabilidade de convocar a Assembleia Nacional Constituinte e, antes mesmo, determinou eleições diretas e livres em todo o território nacional, legalizou partidos políticos que haviam sido banidos pela ditadura e enviou ao Congresso um pacote de medidas para a garantia dos direitos humanos e sociais. O Brasil reatou relações diplomáticas e voltou ao mapa mundial. Era a democracia dando seus primeiros passos, cujo futuro chegou às nossas mãos.

Ao falar sobre esse período, José Sarney resume, como em um testamento, aqueles cinco anos de travessia:

"Herdei para administrar a maior crise política da história brasileira, a maior dívida externa do mundo, a maior dívida interna, a maior inflação que já tivemos, a maior dívida social e a maior dívida moral. Durante o meu mandato, a história se contorceu, mas a democracia não murchou na minha mão."

Temos luzes e sombras. E razões para celebrar!

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