O nascer da memória
Busco na memória minha mais antiga recordação. É um terreno cinza, cheio de brumas, em que não distingo bem o real e o sonho.
Busco na memória minha mais antiga recordação. É um terreno cinza, cheio de brumas, em que não distingo bem o real e o sonho. É uma fileira de índios, um atrás do outro, de flechas na mão. Minha mãe, cuja face me ficou presente em todos os períodos da vida, fecha a porta e me pede que entre. Lembro a cidade de Pinheiro, as casas baixas, a rua deserta e a visão do campo verde, uma planície sem fim que se perdia no horizonte. Lembro as chuvas e, na minha memória, as águas não param de cair. Quando me recordo desse tempo ainda chove, uma chuva azul escuro que turva o dia.
Pinheiro estava no século XX, mas seus hábitos e costumes remontavam ao tempo da colônia e ainda era uma área de descobertas. O único meio de comunicação era o telégrafo, de fio único, que atravessava o campo, linha tênue de referência no meio do verde e das águas. Muitas vezes, menino, eu ficava na beira desse campo olhando a infinidade de pássaros que pousavam no fio, constituindo uma fila interminável. Eram andorinhas, patativas, vim-vins, guriatãs, pássaros todos pequenos que ali descansavam e, como nós, admiravam o campo. Em nuvens se formavam, alimentando-se das sementes de capim ou dos mosquitos que proliferavam nas águas e que eram apanhados como comida, no baile das andorinhas em voos de evoluções e acrobacias que nos faziam passar o tempo contemplando-as.
A cidade era uma pequena vila de duas ruas, uma maior, o eixo central, como sempre chamada de Rua Grande, e outra que dela derivava e ia em curva até a Igreja de Santo Inácio, onde iniciara-se a povoação, com o capitão-mor de Alcântara, Inácio José Pinheiro, que por ali chegara em busca de novos campos para fazendas de criação de gado, tendo ali montado curral por volta de 1815. Em 1856, a povoação foi reconhecida como vila, pela Lei Provincial nº 439, e em 1868 ali já existiam “duzentas almas”. Em 1920 foi elevada a Município, desmembrando-se da Comarca de São Bento.
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Em março de 1930, partindo de São Bento, meus pais chegaram a Pinheiro no fim da tarde e desembarcaram no porto do Albino Paiva — assim chamado porque ali ele tinha sua casa de comércio —, onde aportavam as canoas; no inverno, o único transporte disponível. Naquela tarde, meus pais dirigiram-se para a casa onde iam morar. Era uma pequenina casa, com um quarto na frente, com piso de tijolo local, um outro quarto, uma salinha de comida e cozinha, juntas, de chão de barro batido. Ficava na rua principal, àquele tempo José Anastácio, que fora um grande prefeito da cidade. Em frente morava José Alvim, farmacêutico, solteirão, que depois veio a se casar com Inês de Castro, cujos filhos são meus amigos.
Ali estava a cidadezinha, pobre, isolada, mas bela na pureza de seus humildes arruados: em duas ruas aquele pequeno mundo se esgotava. Pinheiro, meu chão, onde meus olhos se abriram para a vida. Mas nada mais belo do que a minha cidade, seus campos, suas águas, sua gente.
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