COLUNA
Rogério Moreira Lima
Engenheiro e professor, foi coordenador Nacional da CCEEE/CONFEA e vice-presidente CREA-MA (2022). É membro da Academia Maranhense de Ciência e diretor de Inovação na Associação Brasileira de
Rogério Moreira Lima

Canetinha de Ouro: Desafios e Implicações do Exercício Ilegal na Engenharia

O combate ao exercício ilegal da engenharia é essencial para proteger a sociedade, sendo o acobertamento profissional uma das práticas mais prejudiciais

Rogério Moreira Lima

Nos últimos dez anos, grandes acidentes na engenharia resultaram em perdas trágicas, incluindo 242 mortes no incêndio da Boate Kiss (G1 Rio Grande do Sul, 27/01/2021), 19 mortes no rompimento da barragem em Mariana (G1 Minas Gerais, 05/11/2020), 252 mortes no rompimento da barragem em Brumadinho (Costa, Gilberto. Agência Brasil, 09/11/2019) e 10 mortes no incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo (G1 Rio de Janeiro, 08/05/2019). Esses eventos, que somam 523 mortes, destacam o impacto devastador que falhas na engenharia podem ter na sociedade, reforçando a necessidade crucial de regulamentação da profissão. A regulamentação busca assegurar que as atividades de engenharia sejam conduzidas exclusivamente por profissionais com a formação técnica e atribuições adequadas. Portanto, o combate ao exercício ilegal da engenharia é essencial para proteger a sociedade, sendo o acobertamento profissional uma das práticas mais prejudiciais, pois engana a fiscalização dos CREAs e cria uma falsa sensação de segurança.

Mas, afinal, o que é o acobertamento profissional? Popularmente conhecido como "canetinha de ouro", o acobertamento profissional é a prática de regularizar obras e serviços de engenharia mediante a venda de assinaturas, sem a devida participação e supervisão do profissional responsável. Para compreender melhor esse conceito, é importante entender o processo de regulamentação da engenharia no Brasil.

A regulamentação da engenharia no Brasil ocorreu décadas após os Estados Unidos implementarem normas para o exercício da profissão. Nos EUA, a regulamentação começou no final do século XIX, com a Califórnia aprovando a primeira lei de licenciamento da engenharia em 1891. Em 1907, o estado de Wyoming seguiu o exemplo e, em 1950, todos os estados americanos, incluindo Alasca, Havaí, Distrito de Columbia e Porto Rico, já possuíam leis de licenciamento. No Brasil, a regulamentação teve início no século XX, durante a década de 1930. Em 11 de dezembro de 1933, o Presidente Getúlio Vargas publicou o Decreto Federal nº 23.569, que regulamentou o exercício profissional da engenharia e instituiu o Sistema CONFEA/CREA, responsável pela verificação, controle e fiscalização dos engenheiros e empresas de engenharia em todo o território nacional. Essa regulamentação visava não apenas garantir espaço no mercado para os engenheiros brasileiros, mas também assegurar a segurança e qualidade das obras e serviços de engenharia, em um contexto onde leigos e estrangeiros sem a devida formação e habilitação realizavam atividades técnicas.

As dificuldades em rastrear responsabilidades técnicas e combater o exercício ilegal da engenharia levaram à criação da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), instituída em 7 de dezembro de 1977. A ART foi concebida para ser um instrumento mais eficaz no combate às práticas ilegais na profissão, tais como: a realização de atos profissionais por pessoas físicas ou jurídicas sem registro no CREA (art. 6º ‘a’ da Lei 5.194/1966), a exorbitância profissional (art. 6º ‘b’ da Lei 5.194/1966), o acobertamento profissional (art. 6º ‘c’ da Lei 5.194/1966), o exercício da profissão por profissionais com registro suspenso (art. 6º ‘d’ da Lei 5.194/1966) e a execução de atribuições exclusivas dos profissionais de engenharia por firmas ou organizações sem a participação efetiva de um profissional habilitado e registrado pelo CREA (art. 6º ‘e’ da Lei 5.194/1966). Além disso, sem a ART, havia uma enorme dificuldade em apurar responsabilidades em casos de sinistros resultantes de possíveis más condutas profissionais (art. 75 da Lei 5.194/1966), como negligência, imperícia ou imprudência (art. 3º, inciso I, da Resolução CONFEA nº 1090/2017).

Conforme mencionado anteriormente, apenas exigir que um engenheiro seja registrado no CREA não é suficiente para garantir a segurança da sociedade. É necessário saber quais atividades foram realizadas e onde a obra ou serviço foi executado, com tudo devidamente registrado no CREA. Apenas a apresentação de um profissional com registro não define responsabilidades, podendo até facilitar fraudes ao mascarar práticas de acobertamento profissional e apresentar obras irregulares como se fossem executadas por profissionais habilitados.

Atualmente, com a explosão de cursos de graduação em engenharia no Brasil e as falhas na fiscalização da qualidade do ensino, ressurgiu um novo desafio: o acobertamento profissional. Conhecida como "canetinha de ouro", essa prática consiste em assinar a ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) sem a efetiva participação e supervisão técnica, o que representa um grande risco para a sociedade e um desafio significativo para a fiscalização dos CREAs. Para combater esse tipo de exercício ilegal, o CONFEA publicou, em 30 de agosto de 2017, a Decisão Normativa nº 111, que estabelece os procedimentos para a fiscalização da prática de acobertamento profissional.

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Como esclarecido, a criação da ART foi motivada pelo interesse público, visto que os conselhos de fiscalização profissional exercem uma atividade típica de Estado, delegada por lei federal. Essas entidades, prestadoras de serviços públicos com poder de polícia, têm como finalidade fiscalizar o exercício da profissão em defesa da sociedade. Para isso, possuem competência para habilitar profissionais para o exercício da profissão por meio da concessão do registro profissional; habilitar legalmente as empresas para a exploração das atividades profissionais; normatizar os limites de atuação profissional; fiscalizar o exercício adequado da profissão dentro dos padrões éticos e técnicos definidos; cobrar anuidades e multas; executar débitos; aplicar o código de ética profissional; suspender e cassar registros; entre outras atividades típicas de Estado. Dessa forma, deve-se afastar a ideia de que essas entidades existem para atender aos interesses de seus integrantes, pois seu papel institucional é proteger a sociedade, conforme determinado pelo Estado (Acórdão 1925/2019 - TCU-Plenário).

A sociedade deve colaborar e denunciar casos de acobertamento profissional de que tenha conhecimento, afinal, a próxima vítima pode ser qualquer um de nós. Contudo, muitos contratantes têm solicitado apenas a assinatura da ART, como se isso, por si só, resolvesse todos os problemas. A ART desempenha um papel crucial ao definir os limites da responsabilidade técnica e na rastreabilidade dos responsáveis. O próprio acobertamento é investigado a partir da análise das ARTs, seja quantitativamente, considerando o número de ARTs emitidas em um período, ou qualitativamente, avaliando a localização geográfica e a complexidade dos serviços envolvidos.

A dosimetria das penas por acobertamento profissional varia desde multas até o cancelamento definitivo do registro profissional. Por exemplo, se um profissional já penalizado três vezes, em decisão transitada em julgado, for novamente constatado em prática de acobertamento, caracteriza-se má conduta pública, devendo ser instaurado processo por infração ao art. 75 da Lei nº 5.194, de 1966. A condução desse processo obedecerá ao rito estabelecido na Resolução CONFEA 1090/2017, que define quais atos e comportamentos são passíveis de enquadramento como má conduta ou escândalos, resultando no cancelamento do registro profissional.

O cidadão deve estar atento e colaborar com a fiscalização do CREA, pois a vida vale mais do que qualquer bem ou benefício financeiro. Caso tome conhecimento dessa prática abominável, o cidadão pode fazer a denúncia diretamente no site do CREA-MA, clicando em "cadastrar denúncia" na página principal. Lembre-se de que acidentes deixam marcas que desculpas não apagam.



 

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