COLUNA
Curtas e Grossas
José Ewerton Neto é poeta, escritor e membro da Academia Maranhense de letras.
Curtas e Grossas

O mais belo verso

A seleção de um verso bonito demanda uma atenção e uma percepção aguda peculiar a alguém do ramo, no caso, um grande poeta como Bandeira.

José Ewerton Neto

Atualizada em 29/08/2023 às 16h10
 

“Tu pisavas nos astros, distraída” da música Chão de estrelas de Orestes Barbosa, foi considerado por Manuel Bandeira o verso mais bonito da língua portuguesa.

O fato de tê-lo escolhido, não de um poema tradicional, mas de um contexto musical, significa que a seleção de um verso bonito demanda uma atenção e uma percepção aguda peculiar a alguém do ramo, no caso, um grande poeta como Bandeira. 

Provavelmente porque a emoção suscitada pela beleza, assim como ocorre na atração física, dirige-se inicialmente ao conjunto capaz de provocar essa emoção e, apenas no instante seguinte, se atêm aos detalhes que sobrelevam ainda mais aquela sedução. No caso da atração física: os olhos, a postura, os gestos etc. A diferença é que, na leitura, o destaque do detalhe raramente é feita, registrada e consolidada, ao passo que, na contemplação do objeto físico, o êxtase é automaticamente direcionado para as peculiaridades, tanto mais quanto maior for a sedução despertada. 

Deduz-se que, por isso, ao se indagar a alguém qual o poema mais bonito que já leu, muitos hão de se lembrar, enquanto que do seu verso preferido poucos se recordarão com precisão. Supõe-se que alguns poemas, canônicos, sobressairiam na preferência dos leitores casos de A canção do exílio, de G.Dias, As pombas, de Raimundo Correia, Soneto da Fidelidade de Vinicius de Moraes ou algum poema de Augusto dos Anjos. Outros, menos votados viriam de uma apreciação pessoal (no meu caso, entre os brasileiros prefiro para sempre A mosca azul , de Machado de Assis, ainda que o escritor carioca seja mais reconhecido como narrador do que como poeta). Mas e o verso, quem saberia dizer? 

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Claro que se procurarmos em nossas leituras poéticas, essas possibilidades surgiriam de montão, onde os hai-kais seriam um terreno fértil como poemas- sínteses que são, assemelhados a um grande verso como este de Issa “ Ganso, ganso selvagem. Com que idade fizeste tua primeira viagem?”

Para fechar o assunto, após essa curta reflexão me concedo a ousadia de discordar do poeta Manuel Bandeira. Seu verso escolhido é, certamente muito belo, mas para o meu gosto pessoal lhe falta alguma coisa para se tornar o maior. Como não sou capaz, no entanto de escolher um, percebo que essa não é tarefa para mim, mas para poetas da estatura do pernambucano, restando-me a alternativa de me render à sua escolha e aceitar que sim, que de fato seu verso escolhido é deveras o mais bonito. 

Mesmo porque, se não for, ainda assim ele terá acertado, pois o verso mais belo será sempre aquele capaz de nos deixar deslumbrados diante de sua sedução, enfim, aquele capaz de nos fazer pisar nos astros, distraídos. 

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