Um servidor do Brasil
Integralmente aderido a uma corrente doutrinal que qualificaríamos de liberalismo clássico, ou antes liberal-conservadorismo, o ministro Galvêas soube amadurecer, em sua percepção de homem de estudos e em seu pragmatismo de estadista.
No próximo dia 23 de junho fará um ano do falecimento de um servidor do Brasil. Ernane Galvêas — desaparecido poucos meses antes de completar 100 anos de vida — foi presidente do Banco Central em duas ocasiões (1968 – 1974 e 1979 – 1980) e ministro de Estado da Fazenda (1980 – 1985) durante o governo do presidente João Figueiredo, em momento particularmente grave da vida nacional, em razão da Segunda Crise do Petróleo (1979). Sua importância não reside propriamente na eminência dos cargos que ocupou, mas na geração de economistas brasileiros à qual lhe coube pertencer.
Esteve no radar daquela geração intelectual, moral e espiritualmente formada na primeira metade do século XX a resolução dos problemas atinentes ao desenvolvimento sustentável, à erradicação da miséria, aos grandes desníveis regionais do Brasil, à distribuição de renda, ao acesso à propriedade privada, entre outros, de par com a necessidade de se erigir uma ordem econômica justa, legítima e, na medida do possível, duradoura. Eugênio Gudin, Ernane Galvêas, Roberto Campos, Delfim Netto (ainda lúcido e atuante aos 95 anos, o nosso Niccolò Machiavelli) e Mário Henrique Simonsen foram alguns dos notáveis que se defrontaram com tais problemas e que muito concorreram para a sua atenuação, participando ativamente do grande processo de reformismo econômico, financeiro e administrativo pelo qual passou o Brasil nos últimos sessenta ou setenta anos.
Integralmente aderido a uma corrente doutrinal que qualificaríamos de liberalismo clássico, ou antes liberal-conservadorismo, o ministro Galvêas soube amadurecer, em sua percepção de homem de estudos e em seu pragmatismo de estadista, uma compreensão, senão completa e absoluta, ao menos exata de que a civilização necessitava trilhar novos caminhos. Estava convencido que a plenitude do regime democrático — robusto, equilibrado e sedimentado —, efetivamente capaz de assegurar as liberdades política e econômica e o real acesso de todos às conquistas materiais e culturais da civilização, era o fim a ser alcançado. Conhecedor dos lances em que havia se dado o processo histórico brasileiro, em tudo integrado aos valores ocidentais, Galvêas tanto se afastava de quaisquer tendências socialistas quanto de um capitalismo meramente economicista e apartado de tradições e costumes seculares. Não era um tradicionalista por certo, mas, antes pela observação e pelo bom-senso, entendia que a ordem econômica deveria contemplar o homem concreto, situado no tempo e no espaço, com as suas vicissitudes e contingências.
Muito o preocupava a questão educacional. A reforma para a qual dava o seu endosso deveria importar numa continuidade, num aperfeiçoamento do modelo tradicional brasileiro, tão duramente combatido pelas esquerdas, que propagavam a versão de que se tratava de um sistema destinado a escravizar ainda mais as classes operárias, numa ação orquestrada pela burguesia capitalista. As ideias socializantes, quando não abertamente comunistas, de ideólogos como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, muito implicaram, para Galvêas, numa destruição do modelo tradicional brasileiro de educação, de vocação eminentemente humanista, portador de defeitos sem dúvida, mas que já dera provas de vitalidade desde os tempos do Império.
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O seu amigo Roberto Campos — algo influenciado por Hayek, o famoso autor d’ O caminho da servidão, publicado em 1944 — dizia que não pode ser “apenas” economista quem quer ser um “bom” economista. O pensamento encerra uma grande verdade — embora autônoma como ciência, a economia não pode prescindir do amparo da cultura, da religião, do direito, da literatura, pois o homem (que, em suas relações com os bens externos materiais, é o objeto da economia) é ser complexíssimo, com enquadramento sempre provisório, de natureza tão estática quanto de mentalidade tão variável. Um ser assim não pode servir de moldura a qualquer conhecimento científico ou ideologia. Com tal perspectiva dinâmica, a geração de Ernane Galvêas cumpriu o seu papel histórico.
Tive algum contato com o ministro Galvêas em seus últimos anos de vida. Foi-me apresentado pelo meu queridíssimo amigo Aristóteles Drummond, que o conhecia desde os anos de 1960. Além da cordialidade e atenção com que me tratava, deu-me a honra de colaborar como ensaísta em três livros que editei — O homem mais lúcido do Brasil — as melhores frases de Roberto Campos (2013) e O homem mais realista do Brasil — as melhores frases de Delfim Netto (2016), ambos organizados pelo Aristóteles, bem como o Lanterna na proa — Roberto Campos Ano 100 (2017), organizado pelos professores Ives Gandra da Silva Martins e Paulo Rabello de Castro, em comemoração ao centenário de nascimento de Roberto Campos.
Aristóteles Drummond e eu estamos trabalhando presentemente na redação de uma pequena biografia do grande brasileiro, de vida centenária, a sair em livro comemorativo. Já lhe tínhamos aventado a possibilidade do livro. Excessivamente modesto, não achava que sua vida tinha tanto interesse que justificasse uma biografia. Ao menos nisso estava errado. Que o seu exemplo de servidor do Brasil, de homem público correto e competente, de estadista de larga visão seja um exemplo permanente para todos nós.
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