
BRASIL - O jornalista inglĂȘs Dom Phillips chegou a Atalaia do Norte (AM) no começo de junho de 2022, com o propĂłsito de entrevistar lideranças indĂgenas e ribeirinhos para um novo livro-reportagem que planejava escrever. Colaborador do prestigiado jornal britĂąnico The Guardian, Phillips jĂĄ tinha um nome provisĂłrio para sua futura obra: Como Salvar a AmazĂŽnia.
AlĂ©m de jĂĄ ter estado na regiĂŁo algumas vezes e de falar bem o portuguĂȘs, o inglĂȘs de 57 anos viajaria na companhia do experiente indigenista Bruno AraĂșjo Pereira. Ex-servidor da entĂŁo Fundação Nacional do Ăndio (Funai, que hoje se chama Fundação Nacional dos Povos IndĂgenas), o pernambucano de 41 anos chegou Ă cidade poucos dias antes de Phillips e do inĂcio daquela que seria a Ășltima viagem da dupla.
Bruno estava licenciado da Funai desde o inĂcio de fevereiro de 2020. Servidor de carreira da fundação, ele tinha sido dispensado da Coordenação-Geral de IndĂgenas Isolados e de Recente Contato apenas quatro meses antes. Insatisfeito com os rumos que a equipe de governo do entĂŁo presidente Jair Bolsonaro impunha Ă polĂtica indigenista, Pereira optou por se licenciar para âtratar de assuntos pessoaisâ e passou a trabalhar como consultor tĂ©cnico da UniĂŁo dos Povos IndĂgenas do Vale do Javari (Univaja).
âO Bruno Ă© considerado um grande nome do indigenismo brasileiro. Sua atuação nĂŁo estava calcada apenas no trabalho em si. Havia toda uma preocupação nĂŁo sĂł com os povos indĂgenas, mas tambĂ©m com as comunidades do entorno das terras indĂgenasâ, disse Ă AgĂȘncia Brasil o procurador jurĂdico da Univaja, Eliesio Marubo.
Ă frente de projetos que buscavam garantir Ă s comunidades proteger seus territĂłrios e os recursos naturais neles existentes, o indigenista seguia contrariando os interesses de grupos que ameaçam o bem-estar e a integridade de parte da população local. Em função de sua atuação, recebeu mais de uma ameaça de morte, devidamente relatadas ao MinistĂ©rio PĂșblico.
Insegurança
Localizada na trĂplice fronteira amazĂŽnica (Brasil, ColĂŽmbia e Peru), Atalaia do Norte tem cerca de 21 mil habitantes que, hĂĄ dĂ©cadas, convivem com as consequĂȘncias da presença insuficiente do Poder PĂșblico e do avanço de garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais sobre a regiĂŁo. PressĂŁo que se faz sentir principalmente sobre a Terra IndĂgena Vale do Javari - segunda maior ĂĄrea do paĂs destinada ao usufruto exclusivo indĂgena e a que abriga a maior concentração de povos isolados em todo o mundo.
Em 2010, Atalaia do Norte registrou o terceiro pior resultado nacional no Ăndice de Desenvolvimento Humano (IDH). Desde entĂŁo, aos problemas decorrentes da cobiça despertada pelos recursos naturais somaram-se Ă s consequĂȘncias da atuação de organizaçÔes criminosas dedicadas ao trĂĄfico internacional de drogas e da falta de alternativas econĂŽmicas para a população. Na cidade, em 2020, apenas 7% da população de 15 mil habitantes tinha uma ocupação econĂŽmica regular, segundo o IBGE.
Foi neste contexto que Bruno e Phillips deixaram Atalaia do Norte no dia 3 de junho. Segundo a Univaja, o indigenista tinha agendado reuniĂ”es e encontros com lideranças de ao menos cinco comunidades localizadas fora do territĂłrio indĂgena e levaria o jornalista inglĂȘs com ele. Viajando em uma lancha a motor pertencente Ă Univaja, os dois chegaram Ă s proximidades de uma base de vigilĂąncia da Funai, no Rio ItuĂ, na regiĂŁo conhecida como Lago Jaburu, ainda no mesmo dia 3 de junho. Esta primeira parada proporcionaria a Phillips entrevistar integrantes de uma das equipes de vigilĂąncia indĂgena mantidas pela Univaja.
No domingo (5), os dois deixaram o local logo cedo, com destino Ă comunidade SĂŁo Rafael, onde Bruno se encontraria com um lĂder comunitĂĄrio conhecido pelo apelido de Churrasco, que nĂŁo encontraram em sua casa. ApĂłs conversar com a esposa da liderança, a dupla seguiu viagem. Por segurança, Bruno sempre comunicava, antecipadamente, Ă Univaja toda sua movimentação. Ele previa percorrer os 72 quilĂŽmetros atĂ© Atalaia do Norte em cerca de duas horas, chegando com Dom Ă cidade por volta das 9h daquele domingo. PorĂ©m, eles nunca chegaram ao destino.
Desaparecidos
Bruno e Dom desapareceram logo apĂłs serem vistos navegando prĂłximo Ă comunidade SĂŁo Gabriel, povoado vizinho a SĂŁo Rafael, Ășltimo lugar em que pararam. Com o avançar das horas e sem notĂcias da dupla, a Univaja acionou suas equipes mais prĂłximas para que realizassem buscas. No inĂcio da tarde, uma primeira embarcação partiu de Atalaia do Norte. Poucas horas depois, um segundo grupo saiu de Tabatinga, em uma embarcação maior.
No dia seguinte (6), quando surgiram as primeiras informaçÔes de que um jornalista estrangeiro tinha desaparecido em plena Floresta AmazĂŽnica, os ĂłrgĂŁos pĂșblicos passaram a tratar o assunto publicamente. A Marinha informou Ă imprensa que tinha sido notificada do desaparecimento naquela manhĂŁ e que jĂĄ tinha enviado uma equipe de busca e salvamento da Capitania Fluvial de Tabatinga para o local. A PF tambĂ©m informou que âdiligĂȘnciasâ jĂĄ estavam sendo âempreendidasâ e logo seriam detalhadas. Na prĂĄtica, contudo, as equipes da Univaja seguiam tocando sozinhas as buscas iniciais a Bruno e Phillips, entĂŁo considerados desaparecidos.
Limitando-se a informar que estava acompanhando o caso, a diretoria da Funai se apressou a destacar que, embora Bruno continuasse pertencendo ao quadro de servidores da fundação, nĂŁo tinha viajado ao Vale do Javari em missĂŁo institucional, pois estava de licença para âtratar de interesses particularesâ. Quatro dias depois de Bruno e Dom desaparecerem na selva, ou seja, na quinta-feira (9), o entĂŁo presidente da fundação, Marcelo Xavier, participou do programa A Voz do Brasil e disse que a dupla tinha ingressado em territĂłrio indĂgena sem avisar ou pedir a autorização dos ĂłrgĂŁos responsĂĄveis.
âA Funai nĂŁo emitiu nenhuma permissĂŁo para ingresso. Ă importante que as pessoas entendam que, quando se vai entrar numa ĂĄrea dessas, existe todo um procedimentoâ, disse Xavier antes de complementar: âĂ muito complicado quando duas pessoas apenas decidem entrar na terra indĂgena sem nenhuma comunicação aos ĂłrgĂŁos de segurança e Ă Funai.â
âO Bruno e o Dom nĂŁo estavam dentro da terra indĂgena. Mesmo que estivessem, o Bruno estava exercendo uma função prĂłpria da organização indĂgena, prestando auxĂlio a uma das equipes da Univaja, na condição de consultor tĂ©cnico. E nĂłs, indĂgenas, bem como nossas organizaçÔes, nĂŁo precisamos de autorização da Funai para entrar em nossos prĂłprios territĂłriosâ, rebateu, na Ășltima quinta-feira (1Âș), o procurador jurĂdico da Univaja, Eliesio Marubo, para quem a diretoria da Funai foi omissa Ă Ă©poca.
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HĂĄ duas semanas, a PF indiciou Marcelo Xavier e o ex-vice-presidente da Funai Alcir Amaral Teixeira por homicĂdio qualificado e ocultação de cadĂĄver. Para os delegados responsĂĄveis pelo caso, os dois principais responsĂĄveis pelas decisĂ”es tomadas pela fundação indigenista tinham conhecimento do risco de morte a que os servidores do ĂłrgĂŁo estavam expostos no Vale do Javari e nada fizeram para protegĂȘ-los. A reportagem nĂŁo conseguiu contato com Xavier e Teixeira.
PrisÔes
à medida que o tempo passava, o desaparecimento do correspondente do The Guardian e do indigenista ameaçado de morte em plena Floresta AmazÎnica ganhava destaque no noticiårio internacional. Crescia, também, a sensação de que algo de muito ruim podia ter acontecido, jå que Teixeira conhecia muito bem a região e dificilmente teria se perdido.
"O que me pergunto Ă©: serĂĄ que o caso teria toda esta repercussĂŁo se nĂŁo houvesse um jornalista estrangeiro entre as vĂtimas?â, ponderou a atual presidenta da Funai, Joenia Wapichana, ao conversar com a reportagem da AgĂȘncia Brasil, na Ășltima quinta-feira. "Temos vĂĄrios casos envolvendo [agressĂ”es de todos os tipos contra] os povos indĂgenas e que, geralmente, recebem pouca divulgaçãoâ, acrescentou Joenia apĂłs elogiar o trabalho de Dom Phillips.
No dia 6 de junho de 2022, o MinistĂ©rio PĂșblico Federal (MPF) instaurou um procedimento para apurar o caso e acionou forças de segurança federais e estaduais, alĂ©m da Marinha, para que auxiliassem as equipes de busca da Univaja. A PolĂcia Civil do Amazonas tambĂ©m instaurou um inquĂ©rito. A partir dos depoimentos de testemunhas e de um primeiro suspeito, os investigadores chegaram a Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, detido no dia 7.
Inicialmente, Pelado negou envolvimento com o desaparecimento de Bruno e Dom, mas, alĂ©m do testemunho de pessoas que afirmaram ter presenciado ameaças dele ao jornalista e ao indigenista, peritos da PF identificaram vestĂgios de sangue no barco ele usava no dia em que a dupla desapareceu. Em 12 de junho, bombeiros encontraram objetos pertencentes a Bruno e Dom, reforçando a suspeita de que, Ă quela altura, os dois jĂĄ estavam mortos.
Diante dos indĂcios, Pelado acabou admitindo ter participado dos assassinatos e da ocultação dos cadĂĄveres do indigenista e do jornalista, indicando o local onde os corpos da dupla estariam enterrados. As informaçÔes levaram Ă s prisĂ”es do irmĂŁo de Pelado, Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, detido no dia 14 de junho, e Ă expedição de um mandado de prisĂŁo contra Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, que se entregou Ă PolĂcia Civil em Atalaia do Norte quatro dias depois.
No dia 15 de junho, policiais federais localizaram âremanescentes humanosâ em um ponto de difĂcil acesso indicado por Pelado. Apenas dois dias depois, peritos da PF confirmaram que ao menos parte dos vestĂgios humanos encontrados era de Bruno e Dom. No mesmo dia, a CĂąmara dos Deputados aprovou a criação de uma comissĂŁo parlamentar externa para acompanhar, fiscalizar e propor providĂȘncias sobre o desaparecimento do indigenista e do jornalista, conforme proposta da entĂŁo deputada federal e atual presidenta da Funai, Joenia Wapichana. Na ocasiĂŁo, ao votar a favor da iniciativa, a deputada Fernanda Melchionna reverberou as crĂticas ao governo federal. âOs primeiros a começarem as buscas foram justamente os indĂgenas. O governo [federal] começou sĂł trĂȘs dias depois.â
Em 23 de junho, Gabriel Pereira Dantas se apresentou em uma delegacia de SĂŁo Paulo afirmando ter participado dos assassinatos, mas jĂĄ no dia seguinte, a PF informou nĂŁo haver sinais de que o relato fosse verdadeiro, jĂĄ que Gabriel teria apresentado uma âversĂŁo pouco crĂvel e desconexa com os fatos atĂ© o momento apurados". Dantas foi libertado no dia seguinte.
Um novo suspeito foi detido em 8 de julho. Apontado como suposto mandante dos assassinatos e suspeito de envolvimento com o narcotråfico, o colombiano Ruben Dario da Silva Villar foi preso inicialmente por apresentar uma identidade falsa ao prestar depoimento sobre o caso. Vilar negou qualquer envolvimento na morte de Bruno e Dom. Mesmo assim, a PF pediu que ele permanecesse detido durante as investigaçÔes. Somente em 22 de outubro, ele foi autorizado a deixar a prisão, mediante pagamento de uma fiança de R$ 15 mil; o uso de tornozeleira eletrÎnica; a entrega de seus passaportes e o compromisso de não deixar Manaus. Ele voltaria a ser preso em dezembro, por descumprir as condicionantes impostas pela Justiça.
Em 23 de julho, o MPF denunciou Amarildo, Jefferson e Oseney Ă Justiça Federal em Tabatinga (AM), por duplo homicĂdio e ocultação de cadĂĄveres. Na denĂșncia, os procuradores apontam que os dois primeiros confessaram ter matado e escondido os corpos de Bruno e Dom. Para os procuradores, âos elementos colhidos no curso das apuraçÔes apontam que, de fato, o homicĂdio de Bruno teria correlação com suas atividades em defesa da coletividade indĂgena. Dom, por sua vez, foi executado para garantir a ocultação e impunidade do crime cometido contra Bruno.â
Em janeiro deste ano, a PF apontou Ruben Dario da Silva Villar, o ColĂŽmbia, como mandante e mentor intelectual do crime.
âEstas mortes nĂŁo podem ficar impunes. O Poder JudiciĂĄrio brasileiro nĂŁo pode condenar apenas trĂȘs pessoasâ, afirmou o procurador jurĂdico da Univaja, Eliesio Marubo. âConversamos com o ministro [da Justiça e Segurança PĂșblica] FlĂĄvio Dino e pedimos a ele uma investigação mais apurada, inclusive do grupo que dĂĄ sustentação polĂtica ao conjunto de atividades ilegais que acontecem na regiĂŁo. Ă preciso apurar os caminhos do crime na regiĂŁo amazĂŽnica.â
Na Ășltima sexta-feira (2), o MinistĂ©rio dos Povos IndĂgenas anunciou a criação de um grupo de trabalho para promover a segurança e combater a criminalidade no Vale do Javari. O grupo serĂĄ formado por dez ministĂ©rios, que trabalharĂŁo em parceria com a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenovĂĄveis (Ibama) para propor medidas concretas de combate Ă violĂȘncia e com o objetivo de garantir a segurança territorial dos povos indĂgenas que vivem na ĂĄrea. Entidades de povos indĂgenas tambĂ©m participarĂŁo das discussĂ”es.
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