Investigação

Assassinato de Bruno e Dom completa um ano; veja linha do tempo

Indigenista e jornalista desapareceram no dia 5 de junho de 2022.

Alex Rodrigues / AgĂȘncia Brasil

Atualizada em 05/06/2023 Ă s 08h53
Dom Phillips e Bruno Pereira. (Foto: Divulgação)
Dom Phillips e Bruno Pereira. (Foto: Divulgação)

BRASIL - O jornalista inglĂȘs Dom Phillips chegou a Atalaia do Norte (AM) no começo de junho de 2022, com o propĂłsito de entrevistar lideranças indĂ­genas e ribeirinhos para um novo livro-reportagem que planejava escrever. Colaborador do prestigiado jornal britĂąnico The Guardian, Phillips jĂĄ tinha um nome provisĂłrio para sua futura obra: Como Salvar a AmazĂŽnia.

AlĂ©m de jĂĄ ter estado na regiĂŁo algumas vezes e de falar bem o portuguĂȘs, o inglĂȘs de 57 anos viajaria na companhia do experiente indigenista Bruno AraĂșjo Pereira. Ex-servidor da entĂŁo Fundação Nacional do Índio (Funai, que hoje se chama Fundação Nacional dos Povos IndĂ­genas), o pernambucano de 41 anos chegou Ă  cidade poucos dias antes de Phillips e do inĂ­cio daquela que seria a Ășltima viagem da dupla.

Bruno estava licenciado da Funai desde o inĂ­cio de fevereiro de 2020. Servidor de carreira da fundação, ele tinha sido dispensado da Coordenação-Geral de IndĂ­genas Isolados e de Recente Contato apenas quatro meses antes. Insatisfeito com os rumos que a equipe de governo do entĂŁo presidente Jair Bolsonaro impunha Ă  polĂ­tica indigenista, Pereira optou por se licenciar para “tratar de assuntos pessoais” e passou a trabalhar como consultor tĂ©cnico da UniĂŁo dos Povos IndĂ­genas do Vale do Javari (Univaja).

“O Bruno Ă© considerado um grande nome do indigenismo brasileiro. Sua atuação nĂŁo estava calcada apenas no trabalho em si. Havia toda uma preocupação nĂŁo sĂł com os povos indĂ­genas, mas tambĂ©m com as comunidades do entorno das terras indĂ­genas”, disse Ă  AgĂȘncia Brasil o procurador jurĂ­dico da Univaja, Eliesio Marubo.

À frente de projetos que buscavam garantir Ă s comunidades proteger seus territĂłrios e os recursos naturais neles existentes, o indigenista seguia contrariando os interesses de grupos que ameaçam o bem-estar e a integridade de parte da população local. Em função de sua atuação, recebeu mais de uma ameaça de morte, devidamente relatadas ao MinistĂ©rio PĂșblico.

Insegurança

Localizada na trĂ­plice fronteira amazĂŽnica (Brasil, ColĂŽmbia e Peru), Atalaia do Norte tem cerca de 21 mil habitantes que, hĂĄ dĂ©cadas, convivem com as consequĂȘncias da presença insuficiente do Poder PĂșblico e do avanço de garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais sobre a regiĂŁo. PressĂŁo que se faz sentir principalmente sobre a Terra IndĂ­gena Vale do Javari - segunda maior ĂĄrea do paĂ­s destinada ao usufruto exclusivo indĂ­gena e a que abriga a maior concentração de povos isolados em todo o mundo.

Em 2010, Atalaia do Norte registrou o terceiro pior resultado nacional no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Desde entĂŁo, aos problemas decorrentes da cobiça despertada pelos recursos naturais somaram-se Ă s consequĂȘncias da atuação de organizaçÔes criminosas dedicadas ao trĂĄfico internacional de drogas e da falta de alternativas econĂŽmicas para a população. Na cidade, em 2020, apenas 7% da população de 15 mil habitantes tinha uma ocupação econĂŽmica regular, segundo o IBGE.

Foi neste contexto que Bruno e Phillips deixaram Atalaia do Norte no dia 3 de junho. Segundo a Univaja, o indigenista tinha agendado reuniĂ”es e encontros com lideranças de ao menos cinco comunidades localizadas fora do territĂłrio indĂ­gena e levaria o jornalista inglĂȘs com ele. Viajando em uma lancha a motor pertencente Ă  Univaja, os dois chegaram Ă s proximidades de uma base de vigilĂąncia da Funai, no Rio ItuĂ­, na regiĂŁo conhecida como Lago Jaburu, ainda no mesmo dia 3 de junho. Esta primeira parada proporcionaria a Phillips entrevistar integrantes de uma das equipes de vigilĂąncia indĂ­gena mantidas pela Univaja.

No domingo (5), os dois deixaram o local logo cedo, com destino Ă  comunidade SĂŁo Rafael, onde Bruno se encontraria com um lĂ­der comunitĂĄrio conhecido pelo apelido de Churrasco, que nĂŁo encontraram em sua casa. ApĂłs conversar com a esposa da liderança, a dupla seguiu viagem. Por segurança, Bruno sempre comunicava, antecipadamente, Ă  Univaja toda sua movimentação. Ele previa percorrer os 72 quilĂŽmetros atĂ© Atalaia do Norte em cerca de duas horas, chegando com Dom Ă  cidade por volta das 9h daquele domingo. PorĂ©m, eles nunca chegaram ao destino.

Desaparecidos

Bruno e Dom desapareceram logo apĂłs serem vistos navegando prĂłximo Ă  comunidade SĂŁo Gabriel, povoado vizinho a SĂŁo Rafael, Ășltimo lugar em que pararam. Com o avançar das horas e sem notĂ­cias da dupla, a Univaja acionou suas equipes mais prĂłximas para que realizassem buscas. No inĂ­cio da tarde, uma primeira embarcação partiu de Atalaia do Norte. Poucas horas depois, um segundo grupo saiu de Tabatinga, em uma embarcação maior.

No dia seguinte (6), quando surgiram as primeiras informaçÔes de que um jornalista estrangeiro tinha desaparecido em plena Floresta AmazĂŽnica, os ĂłrgĂŁos pĂșblicos passaram a tratar o assunto publicamente. A Marinha informou Ă  imprensa que tinha sido notificada do desaparecimento naquela manhĂŁ e que jĂĄ tinha enviado uma equipe de busca e salvamento da Capitania Fluvial de Tabatinga para o local. A PF tambĂ©m informou que “diligĂȘncias” jĂĄ estavam sendo “empreendidas” e logo seriam detalhadas. Na prĂĄtica, contudo, as equipes da Univaja seguiam tocando sozinhas as buscas iniciais a Bruno e Phillips, entĂŁo considerados desaparecidos.

Limitando-se a informar que estava acompanhando o caso, a diretoria da Funai se apressou a destacar que, embora Bruno continuasse pertencendo ao quadro de servidores da fundação, não tinha viajado ao Vale do Javari em missão institucional, pois estava de licença para “tratar de interesses particulares”. Quatro dias depois de Bruno e Dom desaparecerem na selva, ou seja, na quinta-feira (9), o então presidente da fundação, Marcelo Xavier, participou do programa A Voz do Brasil e disse que a dupla tinha ingressado em território indígena sem avisar ou pedir a autorização dos órgãos responsáveis.

“A Funai nĂŁo emitiu nenhuma permissĂŁo para ingresso. É importante que as pessoas entendam que, quando se vai entrar numa ĂĄrea dessas, existe todo um procedimento”, disse Xavier antes de complementar: â€œĂ‰ muito complicado quando duas pessoas apenas decidem entrar na terra indĂ­gena sem nenhuma comunicação aos ĂłrgĂŁos de segurança e Ă  Funai.”

“O Bruno e o Dom nĂŁo estavam dentro da terra indĂ­gena. Mesmo que estivessem, o Bruno estava exercendo uma função prĂłpria da organização indĂ­gena, prestando auxĂ­lio a uma das equipes da Univaja, na condição de consultor tĂ©cnico. E nĂłs, indĂ­genas, bem como nossas organizaçÔes, nĂŁo precisamos de autorização da Funai para entrar em nossos prĂłprios territĂłrios”, rebateu, na Ășltima quinta-feira (1Âș), o procurador jurĂ­dico da Univaja, Eliesio Marubo, para quem a diretoria da Funai foi omissa Ă  Ă©poca.

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HĂĄ duas semanas, a PF indiciou Marcelo Xavier e o ex-vice-presidente da Funai Alcir Amaral Teixeira por homicĂ­dio qualificado e ocultação de cadĂĄver. Para os delegados responsĂĄveis pelo caso, os dois principais responsĂĄveis pelas decisĂ”es tomadas pela fundação indigenista tinham conhecimento do risco de morte a que os servidores do ĂłrgĂŁo estavam expostos no Vale do Javari e nada fizeram para protegĂȘ-los. A reportagem nĂŁo conseguiu contato com Xavier e Teixeira.

PrisÔes

À medida que o tempo passava, o desaparecimento do correspondente do The Guardian e do indigenista ameaçado de morte em plena Floresta AmazĂŽnica ganhava destaque no noticiĂĄrio internacional. Crescia, tambĂ©m, a sensação de que algo de muito ruim podia ter acontecido, jĂĄ que Teixeira conhecia muito bem a regiĂŁo e dificilmente teria se perdido.

"O que me pergunto Ă©: serĂĄ que o caso teria toda esta repercussĂŁo se nĂŁo houvesse um jornalista estrangeiro entre as vĂ­timas?”, ponderou a atual presidenta da Funai, Joenia Wapichana, ao conversar com a reportagem da AgĂȘncia Brasil, na Ășltima quinta-feira. "Temos vĂĄrios casos envolvendo [agressĂ”es de todos os tipos contra] os povos indĂ­genas e que, geralmente, recebem pouca divulgação”, acrescentou Joenia apĂłs elogiar o trabalho de Dom Phillips.

No dia 6 de junho de 2022, o MinistĂ©rio PĂșblico Federal (MPF) instaurou um procedimento para apurar o caso e acionou forças de segurança federais e estaduais, alĂ©m da Marinha, para que auxiliassem as equipes de busca da Univaja. A PolĂ­cia Civil do Amazonas tambĂ©m instaurou um inquĂ©rito. A partir dos depoimentos de testemunhas e de um primeiro suspeito, os investigadores chegaram a Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, detido no dia 7.

Inicialmente, Pelado negou envolvimento com o desaparecimento de Bruno e Dom, mas, além do testemunho de pessoas que afirmaram ter presenciado ameaças dele ao jornalista e ao indigenista, peritos da PF identificaram vestígios de sangue no barco ele usava no dia em que a dupla desapareceu. Em 12 de junho, bombeiros encontraram objetos pertencentes a Bruno e Dom, reforçando a suspeita de que, àquela altura, os dois jå estavam mortos.

Diante dos indícios, Pelado acabou admitindo ter participado dos assassinatos e da ocultação dos cadåveres do indigenista e do jornalista, indicando o local onde os corpos da dupla estariam enterrados. As informaçÔes levaram às prisÔes do irmão de Pelado, Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, detido no dia 14 de junho, e à expedição de um mandado de prisão contra Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, que se entregou à Polícia Civil em Atalaia do Norte quatro dias depois.

No dia 15 de junho, policiais federais localizaram “remanescentes humanos” em um ponto de difĂ­cil acesso indicado por Pelado. Apenas dois dias depois, peritos da PF confirmaram que ao menos parte dos vestĂ­gios humanos encontrados era de Bruno e Dom. No mesmo dia, a CĂąmara dos Deputados aprovou a criação de uma comissĂŁo parlamentar externa para acompanhar, fiscalizar e propor providĂȘncias sobre o desaparecimento do indigenista e do jornalista, conforme proposta da entĂŁo deputada federal e atual presidenta da Funai, Joenia Wapichana. Na ocasiĂŁo, ao votar a favor da iniciativa, a deputada Fernanda Melchionna reverberou as crĂ­ticas ao governo federal. “Os primeiros a começarem as buscas foram justamente os indĂ­genas. O governo [federal] começou sĂł trĂȘs dias depois.”

Em 23 de junho, Gabriel Pereira Dantas se apresentou em uma delegacia de SĂŁo Paulo afirmando ter participado dos assassinatos, mas jĂĄ no dia seguinte, a PF informou nĂŁo haver sinais de que o relato fosse verdadeiro, jĂĄ que Gabriel teria apresentado uma “versĂŁo pouco crĂ­vel e desconexa com os fatos atĂ© o momento apurados". Dantas foi libertado no dia seguinte.

Um novo suspeito foi detido em 8 de julho. Apontado como suposto mandante dos assassinatos e suspeito de envolvimento com o narcotrĂĄfico, o colombiano Ruben Dario da Silva Villar foi preso inicialmente por apresentar uma identidade falsa ao prestar depoimento sobre o caso. Vilar negou qualquer envolvimento na morte de Bruno e Dom. Mesmo assim, a PF pediu que ele permanecesse detido durante as investigaçÔes. Somente em 22 de outubro, ele foi autorizado a deixar a prisĂŁo, mediante pagamento de uma fiança de R$ 15 mil; o uso de tornozeleira eletrĂŽnica; a entrega de seus passaportes e o compromisso de nĂŁo deixar Manaus. Ele voltaria a ser preso em dezembro, por descumprir as condicionantes impostas pela Justiça.

Em 23 de julho, o MPF denunciou Amarildo, Jefferson e Oseney Ă  Justiça Federal em Tabatinga (AM), por duplo homicĂ­dio e ocultação de cadĂĄveres. Na denĂșncia, os procuradores apontam que os dois primeiros confessaram ter matado e escondido os corpos de Bruno e Dom. Para os procuradores, “os elementos colhidos no curso das apuraçÔes apontam que, de fato, o homicĂ­dio de Bruno teria correlação com suas atividades em defesa da coletividade indĂ­gena. Dom, por sua vez, foi executado para garantir a ocultação e impunidade do crime cometido contra Bruno.”

Em janeiro deste ano, a PF apontou Ruben Dario da Silva Villar, o ColĂŽmbia, como mandante e mentor intelectual do crime.

“Estas mortes nĂŁo podem ficar impunes. O Poder JudiciĂĄrio brasileiro nĂŁo pode condenar apenas trĂȘs pessoas”, afirmou o procurador jurĂ­dico da Univaja, Eliesio Marubo. “Conversamos com o ministro [da Justiça e Segurança PĂșblica] FlĂĄvio Dino e pedimos a ele uma investigação mais apurada, inclusive do grupo que dĂĄ sustentação polĂ­tica ao conjunto de atividades ilegais que acontecem na regiĂŁo. É preciso apurar os caminhos do crime na regiĂŁo amazĂŽnica.”

Na Ășltima sexta-feira (2), o MinistĂ©rio dos Povos IndĂ­genas anunciou a criação de um grupo de trabalho para promover a segurança e combater a criminalidade no Vale do Javari. O grupo serĂĄ formado por dez ministĂ©rios, que trabalharĂŁo em parceria com a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenovĂĄveis (Ibama) para propor medidas concretas de combate Ă  violĂȘncia e com o objetivo de garantir a segurança territorial dos povos indĂ­genas que vivem na ĂĄrea. Entidades de povos indĂ­genas tambĂ©m participarĂŁo das discussĂ”es. 

Linha do tempo

Linha do tempo assassinatos de Bruno e Dom. (Foto: Arte / AgĂȘncia Brasil)

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