Uma investigação exclusiva! Os repórteres do Fantástico descobrem falhas graves no programa do governo federal criado para distribuir dinheiro entre as famílias pobres.
Só este ano, o governo vai investir no programa Bolsa Família mais de R$ 5 bilhões. Esse dinheiro deveria beneficiar famílias pobres e miseráveis - mas você vai ver agora que as coisas não funcionam como deveriam.
Os repórteres do Fantástico estiveram em três cidades de três regiões brasileiras. Logo na primeira delas - que fica no Maranhão - nossas câmeras registraram indícios de mau uso do dinheiro que deveria beneficiar os pobres, especialmente crianças e adolescentes em idade escolar.
Para investigar se o fenômeno poderia estar acontecendo em outros lugares, o Fantástico decidiu visitar outras duas cidades, escolhidas - ao acaso - entre os milhares de municípios brasileiros.
Uma delas, Piraquara, no Paraná, foi visitada por nossos repórteres porque, entre as cidades citadas em reportagens do Jornal Nacional na semana de 20 a 25 de setembro, foi aquela onde - com exceção das capitais - era maior o número de beneficiados do Bolsa Família. A cidade virou notícia no Brasil inteiro depois que uma rebelião numa unidade da Febem matou sete adolescentes.
A outra cidade, em Mato Grosso, foi escolhida porque tinha recebido, na semana anterior à chegada dos repórteres, a visita do caminhão da sorte - que faz os sorteios das loterias da Caixa Econômica Federal - de onde sai o dinheiro do Bolsa Família.
O que você vai ver agora, em todos os detalhes, é o resultado dessa investigação.
Elaine Cristina, de oito anos, é uma brasileirinha procurada pelo governo federal. E precisa ser encontrada com urgência.
“Ela precisa de caderno, de lápis, de todo o materialzinho do colégio, porque eu não tô tendo nada pra comprar. Tudo isso aí precisa e não temos dinheiro para comprar”, conta a avó de Elaine, Terezinha de Jesus.
Elaine e os dois primos ainda bebês são criados pela avó na zona rural de Pedreiras, interior do Maranhão. Elaine vive na miséria e tem direito a receber o dinheiro do programa Bolsa Escola, que o governo destina a crianças como ela.
“Já estou aguardando o Bolsa Escola tem dois anos. Tô aguardando chegar e nunca chega”, diz a avó.
Perto dali, na mesma cidade de Pedreiras, a dona do mercado, uma comerciante de alimentos, recebe o Bolsa Escola para os dois filhos. Ela mostra o cartão que dá direito ao benefício. Além disso, uma mulher, que vende botijões de gás na cidade, recebe ajuda do governo para comprar gás.
Para você entender: o governo Lula criou o programa Bolsa Família para unificar os programas assistencialistas que já existiam no governo anterior: o Bolsa Alimentação, o Cartão Alimentação, o Bolsa Escola e o Auxílio-Gás.
O Bolsa Escola dá ao aluno pobre R$ 15 por mês. O Auxílio-Gás é de R$ 15, mês sim, mês não.
Enquanto o Bolsa Família não for implantado em todo o país, esses quatro benefícios continuam valendo. Mas nenhuma família poderá receber mais de R$ 95.
O Bolsa Família foi anunciado pelo governo como o mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil.
“Me ajuda muito esse Bolsa-Escola. Uma porque eu tenho quatro filhos. O pai me abandonou com eles quatro. Eu já passava muita precisão antes desse Bolsa Escola, tá me entendendo? E depois do Bolsa Escola não, melhorou um pouco”, conta a trabalhadora rural Maria Edna de Souza.
“Até dezembro chegaremos a 3,6 milhões de famílias e, se Deus quiser e todos ajudarem, inclusive meus amigos do Banco Mundial, poderemos chegar aos 11 milhões de famílias no final de 2006”, declarou Lula em 20 de outubro de 2003.
O problema é que o governo não pode ter certeza de que o Bolsa Família está chegando às famílias que realmente precisam dele.
Os repórteres do Fantástico, que usaram uma câmera escondida e não se identificaram como jornalistas, conseguiram uma lista das pessoas que recebem o Bolsa Família em Pedreiras. E descobriram os endereços de algumas delas. Veja:
Numa casa confortável vive Maria Ildeny Alves Melo, vendedora de roupas. Recebe o Bolsa Escola do filho de 12 anos e o Auxílio-Gás.
A casa de Maria Amália, num bairro de classe média, tem carro na garagem e o filho usa moto. Ela recebe R$ 30, pelos dois filhos, e mais o Auxílio-Gás, de R$ 15, a cada dois meses.
Outra casa com carro na garagem. Da garupa da moto do filho desce Claudia Alves. Ela também tem o cartão Bolsa Escola. É funcionária pública.
Outra mulher, que também trabalha na prefeitura, recebe o Bolsa Escola da filha e mais o Auxílio-Gás.
Maria Aparecida também recebe Bolsa Escola e Auxílio-Gás. O irmão dela é secretário de Educação de Trizidela do Vale, um município vizinho.
Maria Aparecida tem emprego: é assistente administrativa na mesma prefeitura do irmão, mas no momento trabalha em Pedreiras.
Agora você vai conhecer uma escola a poucos quilômetros de Pedreiras, no sertão do Maranhão - uma região miserável. A sala de aula, com piso de terra, é dividida ao meio por uma bancada de madeira: ao fundo ficam os alunos da quarta série. Na frente, os da primeira série.
Das 15 crianças que estão na sala, onze não recebem o Bolsa Escola.
“Essas crianças que têm necessidade são crianças que chegam na escola desmaiando porque não tomaram nem café da manhã, que não têm almoço, crianças que não têm jantar, a gente vê muito isso. E a gente está cansado de correr na vizinhança para pedir um copo de leite para dar para aquela criança. É essa que a gente vê a necessidade de ter uma Bolsa Escola, e não tem”, declara a professora Eliane Silva Brito.
O governo determina que podem receber o Bolsa Família as famílias que vivem em extrema pobreza - aquelas que têm renda de até R$ 50 per capita, ou seja, até R$ 50 por membro da família.
Também têm direito ao benefício famílias consideradas pobres e extremamente pobres com crianças de até 15 anos. Nesse caso, a renda tem que ser de até R$ 100 per capita.
O cadastramento das famílias aptas a receber o Bolsa Família é feito pelas prefeituras.
“Quando aconteceu esse cadastro do Bolsa Escola eles cadastraram muitas pessoas que não têm necessidade, que têm casas boas, bons empregos, têm carro, têm moto e recebem Bolsa Escola. Isso me deixa revoltada”, diz a professora Eliane.
“Eu não tenho fatos concretos que tenha pessoa de classe média recebendo. Nosso critério é realmente pessoas que estão na linha de pobreza, abaixo da linha de pobreza. Nós tivemos o maior cuidado”, garante o prefeito de Pedreiras, Raimundo Nonato Alves Pereira.
As pessoas que mesmo vivendo em casas confortáveis recebem o Bolsa Família dizem que se enquadram nas exigências do governo. Elas declaram que têm renda inferior a R$ 100 per capita.
Os repórteres do Fantástico encontraram apenas uma pessoa que admitiu ter mentido ao fazer o cadastramento.
Há um ano e oito meses, o homem que não mostra o rosto recebe dinheiro do Bolsa Alimentação, Bolsa Escola e Auxílio-Gás. O cartão está em nome da mulher dele.
“Eu não tenho necessidade. Sou microempresário, então não tenho necessidade desse cartão. Mas devido ao tipo de cadastramento que foi feito, sem aquela averiguação, o cartão chegou lá em casa daquela maneira”, diz o homem.
“E tem aquela famosa política, aquela festa, e o prefeito se vangloria de algo que ele não fez, porque a única coisa que ele fez foi um cadastramento mal feito. Por isso que muitos que não precisam recebem e poucos que precisam não recebem”, continua.
“Esse desvio de finalidade em várias oportunidades é comprovado e nós do Judiciário, do Ministério Público, não tomamos às vezes as medidas que seriam mais adequadas, que seria a punição exemplar desse tipo de atitude”, comenta o juiz Douglas de Melo Martins.
Esse tipo de desvio foi comprovado recentemente no estado do Rio. Duas semanas antes da eleição, o jornal "O Globo" mostrou que a prefeitura de São Francisco de Itabapoana cadastrou ou entregou senhas a cerca de dois mil candidatos ao Bolsa Família - apesar do município ter uma cota muito menor: só pode incluir 500 beneficiários.
Depois de encontrar indícios de mau uso dos recursos do Bolsa Família em Pedreiras, os repórteres do Fantástico chegaram à cidade de Cáceres, no Mato Grosso, em 27 de setembro passado. Cáceres foi escolhida ao acaso: apenas porque uma semana antes passara por ali o caminhão da sorte que faz os sorteios das loterias da Caixa Econômica Federal - de onde sai o dinheiro aplicado no programa Bolsa Família.
Nasaré Maria da Silva aparece na lista dos beneficiados pelo Bolsa Família - ela deveria estar recebendo um auxílio escolar para os dois netos. Mas diz que nunca recebeu nada.
“Mas no governo federal a senhora aparece na lista como beneficiada, como se a senhora estivesse recebendo”, diz o repórter.
“Não, senhor, pode aparecer lá na papelada, mas na minha mão não. Nem um centavo furado”, responde.
Os netos Adriano e André ganham cada um R$ 25 por mês fazendo pequenos serviços. Nasaré diz que já se cadastrou três vezes na prefeitura de Cáceres, mas que nunca recebeu o cartão magnético que permite sacar o dinheiro do benefício.
“Era muito bom para mim, porque dava para comprar material, lápis, caderno... Já ficava mais favorável para mim, não é verdade? Mas não veio, o que vou fazer?”, resigna-se Nasaré.
Agora, um disparate: enquanto a avó pobre não consegue receber o auxílio do governo para os netos, um homem, dono de um hotel e de mais duas vilas de apartamentos para alugar na cidade de Cáceres, tem um filho que recebe o Bolsa Escola.
Nestor Bahia não mora com o filho. Pedimos que ele indicasse o endereço do menino. Desconfiado, ele pede ao genro que acompanhe os repórteres.
Nestor Bahia parece um sujeito bastante esperto: “Vamos deixar como está, não vi, não sei e não quero saber”
Dentro do carro, o genro confirma: o sogro Nestor Bahia gosta de levar vantagem.
“Ele é bem o tipo malandrão. É bem malandro ele, você viu? Dinheiro não, dinheiro ele não precisa, ele tem uma renda mais ou menos boa, não precisa de dinheiro. Até falei para ele: tem tantas crianças precisando desse dinheiro e às vezes não pode receber esse dinheiro porque tem um que não precisa e tá recebendo esse dinheiro”, relata o genro de Nestor Bahia.
Os repórteres do Fantástico conversaram com o menino filho de Nestor Bahia e com a mãe dele, que de fato recebe o auxílio Bolsa Escola. Mãe e filho não serão identificados nesta reportagem.
Município de Piraquara, Paraná. Dia 28 de setembro. A cidade foi escolhida pelos repórteres porque na semana anterior uma rebelião numa unidade da Febem causou a morte de sete adolescentes - o assunto foi destaque em jornais de todo o país.
Na casa lotérica encontramos pessoas na fila para retirar o dinheiro do Bolsa Escola. Na zona rural de Piraquara encontramos uma mulher, desempregada como o marido, e com seis filhos - quatro deles na escola. A família mora num casebre.
“Não tenho Bolsa Escola. Eu fiz o cadastramento lá na prefeitura faz uns oito meses. Sabe o que eles falaram pra mim? Teu nome não aprovou”, conta Elisabeth de Souza.
Esse nome aprovou: Edith da Costa, moradora de uma casa ampla, confortável, e mulher de Adinã Costa, candidato a vereador derrotado nas últimas eleições em Piraquara.
Edith da Costa é professora no município. O casal recebe Bolsa Escola para a filha e ainda Auxílio-Gás. Eles não parecem se encaixar no perfil de brasileiros que o governo quer ajudar.
Depois de visitar três cidades em três diferentes regiões do país, os repórteres do Fantástico concluíram que funcionários das prefeituras têm preferência para conseguir o Bolsa Família.
Veja o caso da servente Maria Severina da Rocha, que vive numa casa com jardim numa rua asfaltada. Ela nem aparece na lista de beneficiários do governo, mas ainda assim tem o cartão do Bolsa Escola e recebe também o Auxílio-Gás.
“Foi o pessoal da prefeitura que ajeitou para mim”, diz ela.
Rosângela Salgueiro não trabalha na prefeitura, é empregada doméstica. Vive com o marido, pedreiro, numa casa que ainda está sendo construída e tem quatro filhos na escola. Não recebe o auxílio do governo.
“Eu comprei o material escolar fiado. Estou pagando ainda”.
A equipe de reportagem foi à prefeitura de Piraquara para descobrir porque até hoje Rosângela não recebeu seu cartão. A funcionária encontra o nome dela na lista de beneficiários.
Primeiro a funcionária diz que Rosângela está recendo o benefício. Depois, encontra outra explicação. “Pode ser que bloqueou”.
Descobre-se que o cartão de Rosângela dorme há pelo menos seis meses numa gaveta da agência da Caixa Econômica Federal - é à Caixa que cabe, por lei, avisar ao beneficiário que o cartão chegou - e entregá-lo ao dono.
“Como a senhora se sente ao saber que seu dinheiro estava no banco, e que a senhora perdeu esse dinheiro porque não foi buscar?”, pergunta o repórter.
“Eu sinto muito, fico chateada, fico triste em saber que tive uma coisa e perdi, porque se a cada três meses não sacar o dinheiro, perde o dinheiro”, responde Rosângela. “Eu fui atrás, não foi falta de interesse meu, fui na prefeitura, fui na Caixa também”.
O Fantástico descobriu que esse é o mesmo caso de Nasaré Maria da Silva. O cartão dela está na agência da Caixa Econômica em Cáceres, Mato Grosso. Isso indica que há falta de entrosamento entre as prefeituras e o governo federal. E mais: um estudo feito no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, em 53 municípios nordestinos, mostra que as informações do cadastro único dos pobres não são confiáveis. 20% das famílias pesquisadas aparecem no cadastro como tendo renda 0, quando de fato isso só acontece em 2% dos casos. Cerca de metade das famílias afirmou no cadastro único que seu consumo por pessoa é nulo, quando, na verdade, todas as famílias pesquisadas apresentam o que se chama consumo positivo, ou seja, elas consomem alguma coisa.
A falta de informações precisas podem indicar que os índices de pobreza usados no Brasil não são confiáveis. O governo quer incluir cerca de 11 milhões de famílias no cadastro único e assim habilita-las a receber o Bolsa Família. Isso significa que, para o governo, cerca de 54 milhões de brasileiros passam fome. Não seria esse número alto demais?
Hoje o programa Bolsa Família chega a 4,6 milhões de famílias em todo o Brasil. No caso do Bolsa Escola, a contrapartida que o governo exige das famílias é que mantenham os filhos no colégio. O governo queria que esse controle fosse feito pelos professores, mas isso não funciona.
“Nenhum professor aqui em Pedreiras participa deste programa. E seu eu tivesse a freqüência em mãos, eu não teria coragem de prejudicar um aluno que eu sei que é bastante necessitado”, comenta a professora Eliane.
“Não tem nenhum formulário que exija a freqüência para o Bolsa Escola”, diz a professora Maria de Fátima da Silva.
Depois, o Ministério do Desenvolvimento Social lançou uma nova idéia para controlar a freqüência escolar.
“As crianças terão um cartão, ao entrar na escola eles passarão esse cartão e imediatamente haverá uma comunicação com uma central de informações em Brasília”, declarou o ministro do Desenvolvimento, Patrus Ananias, em 10 de setembro deste ano.
Os repórteres do Fantástico visitaram escolas que não têm nem luz elétrica, quanto mais computador. A professora Maria de Fátima, da rede municipal, abriu uma sala de aula dentro da própria casa.
“Nem uma cadeira para professora, mesa para professora, nunca tive o prazer de ter na minha sala”, relata Maria de Fátima.
No ano que vem, o governo pretende distribuir R$ 6,7 bilhões com o programa Bolsa Família. Compare: esse valor não está muito longe do orçamento da educação para todo o ano de 2005: R$ 7,6 bilhões.
E uma última informação: Elaine Cristina, de oito anos, a menina que apareceu no início desta reportagem e que não tem dinheiro para comprar um caderno e um lápis, pode ser encontrada na Rua do Vento, bairro do Diogo, o mais pobre do município de Pedreiras, no Maranhão.
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