Kécio Rabelo
COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Dois livros, dois segredos

O que se escreve é para ser lido. Essa é uma regra tão antiga quanto a própria arte da escrita.

Kécio Rabelo

O que se escreve é para ser lido. Essa é uma regra tão antiga quanto a própria arte da escrita. A mensagem escrita acompanha a humanidade há milhares de anos e tem se mostrado uma grande aliada das civilizações. De tempos em tempos, alguém encontra, em algum lugar, algo que foi escrito em outra época sobre determinado assunto ou simplesmente marcando um período. O fato é que o registro escrito, em suas mais diversas formas, constitui-se como um meio legítimo de eternizar saberes, informações e até mesmo banalidades. Pois bem! Tudo isso para reafirmar a máxima inicial: no escrito, não cabem segredos.

Todos nós já vimos inúmeras séries, filmes, lemos ou ouvimos falar de casos em que segredos foram revelados por conta de uma correspondência violada ou acidentalmente encontrada. É a escrita cumprindo seu papel.

Na casa de Durval, professor de física e músico autodidata, havia uma estante com vários livros. Não chegava a ser uma biblioteca grandiosa como a imaginação poderia desenhar, mas ocupava uma parede inteira da sala, dedicada e organizada com algumas coleções de física e outros títulos aleatórios, consumidos por ele e por sua esposa, uma professora do ensino primário. Ali, em meio a livros e revistas, havia dois volumes especiais: um de capa dura, verde com letras douradas, e outro de capa marrom, cujo título se resumia a três iniciais. O fato é que esses dois livros estavam ali há anos, sem despertar o interesse de ninguém.

Chegava o momento da festa de quinze anos de Clarissa, filha mais velha do casal e irmã de Matilde e Joaquim, o caçula. Mesa posta para o almoço, família reunida e alguns convidados, Durval pede a palavra. Tomado por uma emoção inesperada, improvisa um discurso afetuoso, pontuado por conselhos à filha que entrava na juventude. Ao final, apontando para a estante visível a todos, no canto esquerdo da sala de jantar, Durval diz:

— Filha, a vida é como uma estante de livros. Tem um lugar e um momento para tudo. Há páginas de alegria, de felicidade intensa, e outras de angústia, de dor e sofrimento. Algumas, inclusive, gostaríamos de arrancar. Essas últimas estão em prateleiras que temos vontade de ignorar, onde estão os volumes mais pesados, mais difíceis de ler e entender. Mas sabe, há livros que guardam segredos, que parecem ter sido escritos apenas para uma pessoa, não para serem lidos por multidões. É o caso daqueles dois — concluiu, apontando para o livro verde e para o livro marrom.

Um silêncio pairou no ar. Curiosa, Clarissa se aproximou da estante para pegar os livros, mas foi interrompida pelo pai:

— Não os pegue agora, minha filha. O marrom, você lerá quando for se casar, e o de capa verde, quando for mãe pela primeira vez.

Clarissa prometeu cumprir a orientação do pai, e o almoço seguiu entre risos e brindes.

Passaram-se quatorze anos desde aquele episódio.

Morando fora e recém-formada, Clarissa descobre que está grávida de seu namorado, um colega da faculdade que conhecera ainda no primeiro período da graduação. Em meio a sentimentos confusos e tomada por certa inquietação, decide viajar para casa a fim de contar a novidade aos pais.

Ao chegar, encontra Durval acamado, com a visão comprometida e em um estado de saúde bastante delicado – algo até então desconhecido por ela.

Sem hesitar, Clarissa se apressa em anunciar a gravidez à família e comunica que o casamento será em dezembro daquele ano, na capela da fazenda, conforme a tradição da família. Da cama, com os olhos marejados, Durval se alegra com a notícia de que será avô. Com alguma dificuldade, aponta para o corredor que leva à sala onde se encontra a estante de livros. Todos entendem o gesto, e Clarissa, sem demora, caminha até o móvel.

Parada diante da estante, hesita por um instante, confusa sobre qual livro pegar, pois a ordem imposta pelo pai seguia uma sequência inversa ao momento que vivia. Surpreendida pela mãe, que lhe sugere pegar qualquer um, Clarissa estende a mão e escolhe o livro marrom.

Ao abri-lo, nota que se trata de um livro de receitas, com anotações feitas à mão. Aquele livro pertencera à sua bisavó, mãe de seu pai. Levando-o até o quarto, mostra a Durval que acabara de obedecê-lo.

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— Abra-o na primeira página — pede o pai, com um fio de voz.

Clarissa obedece e lê em voz alta:

— "Neste livro estão todas as receitas para alimentar a vida..."

O restante da frase, e o que mais se encontrava ali, ela ainda não sabia. Mas estava prestes a descobrir.

Movida pela curiosidade e considerando o estado de saúde do pai, Clarissa corre até a estante e pega o outro livro, abrindo-o apressadamente. Para sua surpresa, eram seus próprios desenhos e primeiras tentativas de escrita da infância, que seus pais haviam encadernado em uma edição especial.

Durval, ao lado da mãe de Clarissa, acompanha a cena com um nó na garganta.

— Filha, é mais fácil seguir receitas que outros criaram, testaram e deixaram escritas. Difícil é seguir as receitas que nós mesmos escrevemos.

Ele pausa por um instante, depois continua:

— Em cada desenho e tentativa de escrita contidos nesse livro estão seus sonhos, seu olhar de criança sobre o mundo e seu desejo de explorá-lo. Veja esses pássaros na página 9. Você os desenhou no dia em que me perguntou o que era liberdade. Eles estão aí desde aquele dia, parados no seu desenho. As flores, os gafanhotos, a casa no lago e até o skate que voa também estão ali. Todos falam de você e do seu sonho de desbravar o mundo.

Clarissa folheia as páginas lentamente, reconhecendo os traços e lembranças que havia esquecido. Na última página, encontra algo inesperado.

— Mas tem algo aqui que você não lembra — diz Durval. — Não foi você quem fez.

Ela observa atentamente e vê, colada à folha, uma borracha escolar. Logo abaixo, lê a seguinte frase: "Conceitos mudam, lugares se adaptam, erros ensinam. A coragem é o primeiro passo para a liberdade, mas sonhos — pitorescos ou nobres — sonhos não se apagam."

Clarissa segura o livro com força e, em silêncio, compreende o verdadeiro significado dos segredos que aqueles livros guardavam.

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