COLUNA
Félix Alberto
Félix Alberto é poeta e jornalista.
Félix Alberto

Ainda estou aqui, um filme para não esquecer

O filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, é uma obra que perfura a bolha do cinema convencional e impõe-se em 2024 como divisor de águas na narrativa sobre a ditadura militar no Brasil.

Félix Alberto

O filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, é uma obra que perfura a bolha do cinema convencional e impõe-se em 2024 como divisor de águas na narrativa sobre a ditadura militar no Brasil. Com uma forte carga emocional, o longa-metragem evita deslizes apelativos ou panfletários para alcançar uma sofisticação rara ao retratar temas tão delicados e dolorosos.

No centro da trama, Fernanda Torres vive Eunice Paiva, uma mulher que se ergue como farol de resistência diante da brutalidade do regime militar. A personagem enfrenta uma jornada devastadora após o sequestro, prisão e morte do marido, o ex-deputado Rubens Paiva, um dos casos mais emblemáticos da violência estatal após o golpe militar de 1964. 

Fernanda interpreta Eunice com uma intensidade e sutileza extraordinárias, numa performance que mescla a dor interior com a firmeza na linguagem gestual e no percurso de luta por ela empreendido. Um dos aspectos mais marcantes de Eunice é sua capacidade de conduzir essa luta com dignidade e força, sem jamais permitir que sua fragilidade transpareça para os filhos ou para a opinião pública. 

Walter Salles, ao adaptar a obra de Marcelo Rubens Paiva para o cinema, opta por um enfoque que não é exclusivamente de denúncia, de protesto, mas que privilegia questões humanas, com ênfase na integridade moral e emocional de Eunice. A mensagem política é clara, tanto no livro como no filme, embora não seja ela a mola propulsora de arrebatamento que o longa-metragem provoca.

No livro de Marcelo Rubens Paiva (Alfaguara, 2015), o ponto de partida da narrativa é o Alzheimer de Eunice Paiva, mãe do autor e uma figura central em sua vida. Ao narrar o declínio cognitivo de Eunice, Marcelo reconstrói a história de sua família. O desaparecimento de Rubens Paiva é o eixo em torno do qual a trama se desenrola. No entanto, o livro não se limita à dimensão política desse evento; ele se aprofunda nas implicações humanas, emocionais e psicológicas que tal perda provocou.

Com o desaparecimento do marido, Eunice cria os filhos sozinha e assume um papel de resistência, engajando-se em causas políticas e sociais. Marcelo retrata a mãe com um misto de admiração, ternura e assombro. Eunice é a mãe fria, que pouco abraça ou beija os filhos, mas que não abre mão de tê-los por perto, debaixo de sua saia. 

As memórias de Eunice são reconstituídas com sensibilidade, revelando uma mulher que se recusou a ser definida pelo papel de vítima. “Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Precisamos estar saudáveis, bronzeados para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom, ela quem nos ensinou”, relata Marcelo na obra.

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O livro Ainda estou aqui, vencedor do Prêmio Jabuti em 2015, aborda a questão da memória de maneira multifacetada. O Alzheimer de Eunice simboliza não apenas a perda individual de suas lembranças, mas também o perigo do esquecimento coletivo em relação aos horrores da ditadura. Nesse sentido, o livro funciona como um alerta: lembrar é resistir, e contar essas histórias é uma forma de preservar a verdade.

Em sua primeira empreitada literária – Feliz ano velho, lançado em 1982 pela editora Brasiliense – Marcelo Rubens Paiva, ao narrar os desdobramentos do acidente que o deixou tetraplégico, aborda também, ainda que de passagem, o drama familiar após o sequestro e morte do pai Rubens Paiva em plena ditadura militar. O livro virou best-seller, ganhou prêmios e reedições e foi adaptado para o teatro e cinema. 

No filme de Walter Salles, o recorte na trajetória da protagonista é, ao mesmo tempo, regional e universal, ao refletir sobre a capacidade de resistência de mulheres que, diante de adversidades inimagináveis, encontram forças para abalar o establishment. Quantas Eunices mundo afora não moeram a corda de sustentação do estado? Daí a repercussão de Ainda estou aqui nos mais importantes festivais de cinema, em diferentes países e culturas. 

Inicialmente apresentada como uma esposa e mãe buscando respostas, Eunice gradualmente vai se tornando uma militante ativa, moldada pelo trauma da perda do marido, pela condição de chefe de família que o destino lhe impôs, até ser completamente dragada pelo Alzheimer.

Vale frisar que o filme também merece atenção por abrir discussões que ecoam nos dias atuais. Ao abordar a brutalidade do regime militar, Ainda estou aqui convida o espectador a traçar paralelos com a situação de grupos vulneráveis na contemporaneidade — como pretos, pobres, indígenas e LGBTQIA+ — que enfrentam formas de repressão institucionalizadas. Salles, com sutileza, aponta para as semelhanças entre os mecanismos de opressão do passado e do presente, sem perder de vista o foco humano e pessoal da narrativa.

Muitos brasileiros, de diferentes correntes políticas, já foram às salas de cinema para assistir ao badalado Ainda estou aqui. O filme está no centro das conversas, entrou em pauta nas repartições públicas e mesas de botequins. Mas o que dizem, afinal, sobre a história de Eunice Paiva os defensores de uma nova intervenção militar no País, da volta das forças armadas ao comando da política brasileira? Aprovam a narrativa de Walter Salles? Se reconhecem na história? Relativizam? 

Ainda estou aqui é, em suma, uma obra que se destaca por sua narrativa envolvente, pela atuação excepcional de Fernanda Torres e pelo impacto emocional duradouro. Ao deixar o cinema, o telespectador segue com o filme ressoando alma adentro. Walter Salles cria uma experiência cinematográfica que não apenas honra a memória de Rubens Paiva, mas que celebra a resistência das Eunices que enfrentaram o regime militar e encontraram, na dor, uma razão para continuar lutando.

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