Shakespeare Revisitado
A peça teatral Hamlet (1601), de William Shakespeare, foi adaptada para o cinema, em 2018, por Claire McCarthy em seu filme Ofélia.
De acordo com Ubersfeld (2005), a personagem teatral deve ser compreendida como um “lugar indefinidamente renovável de uma produção de sentido” (p. 72), e não como um objeto estático, imutável, petrificado. Essa pluralidade de sentidos, sem dúvida, faz com que essas personagens sejam propícias às adaptações. Nesse sentido, Pereira e Rosenfield (2020) destacam que, apesar da aparente invisibilidade de Ofélia, no aclamado texto de Shakespeare, Hamlet (1601), a crítica não perdeu o interesse pela sua enigmática figura, muito pelo contrário.
Segundo esses pesquisadores, um “dos projetos mais interessantes, por transpor as fronteiras estéticas do período, observa a persistência semiótica e imaginária do corpo de Ofélia, dissolvido, idealizado na história pictórica do Ocidente” (2020, p. 74). Assim, a personagem shakespeariana persiste ao longo do tempo. E, cada vez mais, vem ganhando espaço, novas roupagens e atualizações, como é o exemplo do filme Ofélia (2018). Então, nosso objetivo será comparar esses dois textos, teatral e fílmico, a fim de acompanhar o caminho trilhado por Ofélia, de personagem secundária à protagonista.
Ao analisar uma obra, seja ela literária ou cinematográfica, é preciso observar, atentamente, a sua narrativa. Como a história é narrada? A partir de qual marco temporal? E sob qual ponto de vista? A fim de esboçar possíveis respostas, vamos nos voltar ao início dos textos, que são nossos objetos de estudo. Hamlet (1601), de William Shakespeare, inicia sua narrativa com um fantasma assombrando o castelo. Esse era justamente o fantasma do rei, do falecido pai do protagonista. Logo, sob esse ar sobrenatural, pairam as amargas dúvidas de Hamlet, que suspeita que sua mãe cometeu adultério com o seu tio, atual rei, e que seu pai foi assassinato. E essas suspeitas levam-no ao desejo de vingança. Assim,
Toda a história de Hamlet pode ser entendida como os esforços ao mesmo tempo eficazes e destrutivos realizados pela personagem-sujeito, para recuperar seu próprio espaço em sua totalidade. Em certo sentido, a estrutura de quase todas as narrativas dramáticas pode ser lida como um conflito de espaços, ou como a conquista ou o abandono de determinado espaço (Ubersfeld, 2005, p. 106).
Vale ressaltar que, nesse texto de Shakespeare, a narrativa centra-se na figura do protagonista, Hamlet, nos seus dilemas, suspeitas e vingança. Essa peça teatral se inicia a partir de um momento adiantado da história, Hamlet é adulto e já é enamorado por Ofélia, seu pai já faleceu, seu tio já assumiu o reino e casou-se com a rainha. Isto é, o texto shakespereano só conta um pequeno recorte da vida dos personagens, sobretudo, Hamlet e sua conturbada família.
Por sua vez, o filme Ofélia (2018), dirigido por Claire McCarthy, inicia com uma cena na qual a protagonista, Ofélia, está, ao que tudo indica, morta, com seu corpo flutuando em um riacho, rodeado por flores. Logo em seguida há um flashback e a narrativa começa, de fato, a partir da infância de Ofélia, evidenciando a curiosidade, inteligência e ousadia da menina. Logo no início do filme, é revelado que ela, e sua família, não pertenciam à nobreza, e, por isso, ela se tornou dama de companhia da rainha, quando ainda era criança.
Dessa forma, se comparado ao texto fonte, esse filme preenche os “espaços vazios” deixados na narrativa shakespeariana. Conta o que, possivelmente, houve antes e depois dos acontecimentos narrados em Hamlet (1601). Porém, há uma mudança de perspectiva, pois o protagonismo deixa a figura de Hamlet e recai sobre Ofélia. Sua vida e (des)venturas são narradas e, somente em segundo plano, aparece a tragédia que atingiu a família de Hamlet. E mais, a história de Hamlet só é contada, no referido texto cinematográfico, no instante em que ela se entrelaça à história de Ofélia.
Um aspecto que, sem dúvida, é digno de nota, trata-se da construção dos personagens Laertes e Polônio, que são, respectivamente, o irmão e o pai de Ofélia. É importante ressaltar que eles também foram recriados na narrativa audiovisual. No texto fonte, Laertes exercia a autoridade, que possuía sobre a irmã, sem interdições, e demonstrava a veemente repulsa que sentia pelo relacionamento de Ofélia com Hamlet, por acreditar que ele estava somente se aproveitando de sua irmã, sem compromisso algum, pois o maior dever de um príncipe é com o seu reino.
Já no texto fílmico, há um abrandamento da personalidade de Laertes, ele se torna carinhoso com Ofélia, e ensina tudo que sabe a ela, desde a leitura e a escrita, até outros conhecimentos de cunho científico. O que era incomum na época em que a narrativa se ambienta, pois, como foi retratado no referido filme, as mulheres não podiam, ao menos, entrar nas bibliotecas. Contudo, há uma coincidente desaprovação do relacionamento da irmã com Hamlet, na adaptação de Claire McCarthy. Polônio, por sua vez, permanece autoritário nas duas obras analisadas, mas utiliza o poder que tem sobre Ofélia de maneiras distintas. Na peça de Shakespeare, Polônio ordena que a filha, pertencente à nobreza, se afastasse de Hamlet.
Assim como Laertes, ele acreditava que o casamento do príncipe seria uma aliança política e/ou econômica, e não uma ligação puramente pautada em sentimentos de afeto. Já no filme, como foi mencionado anteriormente, Ofélia era uma das damas de companhia da rainha, por isso, Polônio convenceu a filha de que seu envolvimento com Hamlet poderia ajudá-los. Fica implícito, na referida obra audiovisual, que ele não estava pensando, em momento algum, que os jovens iriam se casar, mas achava que, mesmo que sua filha fosse concubina/amante do príncipe, já conseguiria privilégios para toda família. Diante disso, no texto shakespereano,
A voz predominante é a de Hamlet, ofuscante, onipresente, julgadora e auto julgadora. Ele fala da impotência, da covardia (sua), de empreendimentos baldados pela consciência. Vê deficiência em si mesmo, porém, por isso mesmo, é mais fascinante. Quanto aos outros, falam muito, são sujeitos densos, analíticos, reflexivos, manipulativos e: volitivos. A exceção é Ofélia. Sua forma estilizada de se expressar raramente nos transmite a impressão de que carrega uma “intenção”. Conhecemos Shakespeare e suas técnicas: ele sabe adensar um caráter e, quando não o faz, podemos estar certos de que produziu de propósito tal opacidade. A linguagem de Ofélia é hiper-estilizada. Por exemplo, quando fala, submissa e obediente, com Polônio, que, por sua vez, fala a linguagem azeitada do cortesão sabido. A linguagem de Ofélia é estilizada também no sentido que ela ainda não floresceu para a espontaneidade e a iniciativa (Pereira & Rosenfield, 2020, p. 72-73).
Em vista disso, as histórias prosseguem. Se por um lado, após a personagem Ofélia, de Shakespeare, por ordem do pai, afastar-se de Hamlet e acreditar ser a motivação de sua, aparente, loucura. Por outro, no filme de Claire McCarthy, Ofélia e Hamlet iniciam seu romance, nas margens do mesmo riacho onde, posterior e aparentemente, a protagonista faleceu. Logo após um baile, e o primeiro beijo do casal, Hamlet confessou à sua amada que precisaria dar prosseguimento aos seus estudos, bem longe dali, deixando a entender que o amor deles era impossível, visto que a jovem não pertencia à nobreza. Nesse ínterim, na peça shakespeariana, Polônio conta ao rei e à rainha que acredita que a loucura de Hamlet é motivada pela frieza de Ofélia.
Já na adaptação cinematográfica, o tempo seguiu seu curso e a protagonista Ofélia foi sozinha à uma floresta deserta, a pedido da rainha, buscar uma poção com uma curandeira. Essa senhora foi acusada de bruxaria ainda na juventude, quando engravidou de seu noivo, que não por acaso era o tio de Hamlet. Não querendo assumir a criança, e para se livrar da noiva, a chamou de bruxa, e logo o povo começou a persegui-la. Entretanto, por conhecer ervas e produtos medicinais, ela conseguiu escapar, pois tomou uma pequena dose de um veneno, que simulou a sua morte, e quando despertou, bem longe, tomou o antídoto e se isolou na floresta. A figura da bruxa, sem dúvida, é um interessante recurso utilizado nessa narrativa audiovisual, pois representa a ancestralidade e poder feminino que, por vezes, é silenciado e punido.
Ao voltar ao castelo, Ofélia viu um ser de capuz, que pensou ser um fantasma. Nesse momento, o espectador pode se questionar se a protagonista está perdendo a razão, tal como aconteceu na peça shakespeariana. Em seguida, o pai de Hamlet faleceu, picado por uma cobra, segundo os súditos, e, algum tempo depois, a rainha se casou com o cunhado, que assim se tornou o rei. Hamlet retornou ao castelo e ficou totalmente transtornado ao saber que seu pai havia falecido e que, em um curto intervalo de tempo, sua mãe já havia se casado com o odioso tio.
Numa tentativa de apaziguar a dor que sentia, Hamlet pediu a mão de Ofélia em casamento. Eles se casaram secretamente no campo e combinaram que iriam fugir do reino para ficarem, finalmente, juntos. Isso, porém, não aconteceu. Ao notarem o modo estranho, e tresloucado, de Hamlet o rei e a rainha ficaram atônitos, ele havia descoberto a verdade? Queria vingança? Polônio, assim como no texto fonte, acreditava que Ofélia era o motivo da loucura do rapaz. Por isso, ele e o rei armaram uma armadilha: desconfiando do envolvimento de Ofélia e Hamlet, deixaram a moça em um salão para que o príncipe falasse com ela, enquanto eles estavam escondidos, escutando todo o diálogo.
Em voz baixa, Ofélia avisou a Hamlet que eles estavam sendo observados, por isso, em voz alta, eles simularam uma briga. Enquanto isso, entre um grito e outro, a protagonista sussurrava a verdade ao príncipe: o homem de capuz era, na verdade, o atual rei, ele matou o próprio irmão para usurpar a coroa e a rainha. Ao saber disso, Hamlet ficou transtornado e desfez suas promessas de amor, pois sua coroa foi roubada. Gritou que Ofélia deveria ir para um convento e a jovem se assustou/decepcionou ao ouvir isso. A bruxa tinha lhe avisado, antes do casamento clandestino: “Você é selvagem e cheia de desejo. Eles vão despi-la, vão julgá-la, e vão fazê-la querer a morte. Eles vão jogá-la ao fogo”. E essa fala reflete, justamente, todo o desprezo e perseguição que a curandeira sofreu, na juventude.
Na peça, Hamlet e Ofélia tiveram a mesma discussão, assistida de camarote por Polônio e o rei, entretanto, o príncipe não contou à jovem suas reais intenções. Simplesmente permaneceu no papel de louco e disse que não a amava e que ela deveria ir para um convento. Ofélia se entristeceu e ficou ainda mais convencida de que era a culpada pela loucura de Hamlet. Então os dois textos coincidem: Hamlet pediu que uma companhia de teatro encenasse uma peça sobre adultério, assassinato e traição. Essa foi uma armadilha para o rei e a rainha, eles ficaram com muito medo. E, furioso, o rei mandou parar a peça. As suspeitas de Hamlet foram confirmadas.
Nas duas narrativas, Hamlet ficou inquieto, com uma forte ânsia por vingança, mas também com um certo receio. Havia um motivo para o seu conflito moral. Ainda sob influência da Idade Média, havia a crença na justiça com as próprias mãos, tal como na Lei de Talião, “olho por olho, e dente por dente”. Mas havia um porém. Como foi mencionado anteriormente, era extremamente proibido atentar contra a vida do rei, mesmo que fosse culpado/tirano, porque ele era tido como um representante divino. Cego pelo ódio, Hamlet conversou seriamente com a sua mãe, e disse a ela que sabia de toda a verdade.
Polônio estava escondido. Hamlet pensou ser o rei. E, acidentalmente, matou o pai de sua amada Ofélia. Então, ele foi mandado para a Inglaterra, e descobriu que seus antigos amigos tinham recebido uma ordem para matá-lo. Ao saber do assassinato de seu pai, Laertes jurou vingança. E, mais uma vez, os textos fílmico e teatral tomam rumos diferentes. No filme, ao perceber a influência que Ofélia tinha sobre Hamlet, o rei quis que ela se casasse com um guarda cruel.
Contudo, ela conseguiu fugir do casamento forçado, e após saber, por Horácio, que o príncipe estava bem, a protagonista fingiu estar louca, e ficou cantando e dançando, perante o rei e a rainha. Já na peça, o destino de Ofélia foi mais cruel, e ela enlouqueceu, de fato, após a morte do pai, a dureza de Hamlet, ao dizer que não a amava, e, principalmente, por acreditar que ela era a fonte da loucura do príncipe. Sem apoio, ela perdeu-se de si mesma. E Laertes, nas duas obras, jurou se vingar de Hamlet pela morte do pai e a loucura da irmã.
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Desse modo, os destinos das duas Ofélias foram selados. No texto shakespereano, sem esperanças, a personagem secundária cometeu suicídio, afogando-se nas águas de um rio. Vale ressaltar que, na época, o suicídio não era visto com bons olhos pela Igreja Católica, por isso, os suicidas não eram sequer enterrados no “solo sagrado” dos cemitérios cristãos, exceto quando eram nobres. Shakespeare faz uma crítica ferrenha ao comportamento dúbio da Igreja, na fala dos coveiros, que enterraram Ofélia: “o maior pecado é que os grandes deste mundo podem se afogar e enforcar mais do que os simples cristãos” (Shakespeare, 1601, p. 119). Assim, o “maior pecado” seria, na verdade, utilizar dois pesos e duas medidas para julgar o povo. Segundo Pereira e Rosenfield (2020),
a vida pregressa de Ofélia é, para a maioria dos críticos, um enigma, um dilema para ela própria e para o próprio Shakespeare. [...] No entanto cabe dizer: ela possui, sim, uma história, a história das vítimas que não resistiram e que, portanto, suicidando-se, legam para os outros a lógica que as levou à morte – essa tarefa pesada do legado dos suicidas – sua acusação muda contra a comunidade que tornou suas vidas impossíveis – é, sem dúvida uma das razões para as sanções e leis contra o suicídio (p. 75).
E se essa história fosse diferente? Esse é, sem dúvida, o propósito do filme Ofélia (2018), tal como podemos notar, na fala inicial da protagonista: “Você pode até pensar que conhece minha história. Muitos já a contaram. Há muito tempo me tornei um mito. [...] E agora, finalmente, eu mesma vou contar a minha história”. Desse modo, na adaptação de Claire McCarthy, Ofélia não cometeu suicídio, apenas tomou uma pequena dose do mesmo veneno que a bruxa, para simular a sua morte no riacho. A seu pedido, Horácio a desenterrou e a curandeira lhe deu o antídoto.
A bruxa, aliás, era irmã da rainha. Essa revelação acontece no instante em que a rainha vai à sua cabana na floresta, e, ao invés de encontrar a irmã, encontrou Ofélia. Inicialmente, pensou ser um fantasma assombrando sua consciência pesada, mas, depois, percebeu que a jovem não havia morrido e a ajudou a se disfarçar, vestindo-a como um homem. Nesse momento, a protagonista contou à rainha tudo o que o atual rei havia feito à sua irmã, na juventude, bem como o plano que ele havia tramado para envenenar Hamlet. Dessa forma, elas retornaram, juntas, ao palácio.
As histórias, mais uma vez, coincidem, e o épico duelo entre Hamlet e Laertes acontece. Contudo, os desfechos foram, em certa medida, diferentes. No texto fílmico, Ofélia insistiu para que Hamlet desistisse da vingança, pois esse duelo resultaria na sua morte. Ele não lhe deu ouvidos e prosseguiu com o seu plano vingativo. Ofélia, por sua vez, fugiu, sozinha e o mais rápido possível, para um convento. No texto fonte, o rei envenenou uma taça de vinho para matar Hamlet, se a espada, igualmente envenenada, não o fizesse.
A rainha bebeu dessa taça, por acidente, e faleceu. Hamlet foi atingido por Laertes, que empunhava a lâmina envenenada. Mas o príncipe conseguiu pegar a espada do adversário e atingiu tanto Laertes quanto o rei. Todos morreram envenenados. E restou somente Horácio, melhor amigo do protagonista, para contar o que houve ao povo. Enfim, Hamlet (1601) narra uma tragédia provocada pela vingança. No filme Ofélia (2018), a espada envenenada ocasionou, da mesma maneira, as mortes de Hamlet e Laertes, entretanto, quem atingiu o rei, ocasionando a sua morte, foi a rainha. E, logo em seguida, ela cometeu suicídio, ao beber, intencionalmente, o vinho envenenado.
É válido salientar que, nas duas obras, na iminência de todas essas mortes trágicas, o reino, que antes era governado pela família de Hamlet, é invadido pela Noruega. E essa é a última cena da peça teatral de Shakespeare. A adaptação de Claire McCarthy tem um desfecho bem diferente, pois as últimas cenas demonstram que Ofélia conseguiu chegar ao convento em segurança, e revelam que ela estava grávida. Muitos anos se passaram e ela contou sua história para a filha, fruto do romance que teve com o príncipe Hamlet. Logo, há um happy ending, com uma mulher repassando seu legado para uma outra (futura) mulher, assim como fica evidente na última fala da protagonista, no filme:
Você pode até pensar que conhece a minha história... Você ouviu que ela termina em loucura, corações partidos, sangue derramado, um reino perdido. Essa é uma das histórias, mas não é a minha. Eu não perdi o meu rumo, não me perdi para a vingança, ao contrário, achei meu caminho para a esperança. Naquele dia, eu contava a minha própria história. Assim como um dia, você, meu amor, contará a sua (McCarthy, 2018).
Portanto, Hamlet (1601) e Ofélia (2018), – apesar de trazerem, em suas essências, o drama vivido pelo príncipe, por Ofélia e suas respectivas famílias – configuram-se como textos distintos e, sobretudo, independentes, com protagonistas, narrativas e desfechos diferentes. No texto fonte, Shakespeare utilizou, do início ao fim, vozes e visões masculinas, evidenciando os conflitos internos e externos dos personagens, tendo como mote a vingança. Com sutileza e muita ironia, o ilustre dramaturgo criticou várias estruturas de poder: a Igreja, a monarquia, e, até mesmo, o patriarcado. A renitente invisibilidade de Ofélia não é em vão, pois, ainda de acordo com Pereira e Rosenfield (2020), “Ofélia afunda na voragem vazia das palavras. E ainda assim, a despeito do espetáculo desconfortável, do ruído do vazio, o silêncio de Ofélia é eloquente: e talvez seu poder perturbador esteja nessa opacidade estranha de uma perdição irrevogável” (p. 90).
A adaptação fílmica de Claire McCarthy, por sua vez, começa e termina com a fala, opinião e visão de Ofélia. A história de Hamlet é contada por ela. Nessa nova narrativa, Ofélia é a protagonista. Diante disso, há uma mudança de perspectiva, visto que o feminino é muito forte, no decorrer de todo o filme, através das figuras da rainha, da mãe, da bruxa, e, principalmente, da dama de companhia, que deixa seu papel às sombras e se torna protagonista da própria história. Essas personagens femininas representam, portanto, novas configurações de poder, pautadas na ancestralidade, na sabedoria, e, na esperança de um futuro (re)construído.
Após nossas análises, concluímos que Hamlet (1601) e Ofélia (2018), configuram-se como textos independentes, com protagonistas, narrativas e desfechos distintos. No texto fonte, Shakespeare utilizou, do início ao fim, vozes e visões masculinas, – o que era totalmente compreensível em sua época –, contudo, fez isso para demonstrar os conflitos internos e externos dos personagens, tendo como mote a vingança. Em vista disso, o famoso dramaturgo inglês, com sutileza e um leve tom irônico, criticou várias estruturas de poder, sobretudo, a Igreja, a monarquia, e, o patriarcado.
Por sua vez, a adaptação audiovisual de Claire McCarthy, preenche os “espaços vazios” deixados na narrativa shakespeariana. Conta o que, possivelmente, houve antes e depois dos acontecimentos narrados em Hamlet (1601). Porém, há uma mudança de perspectiva, visto que nessa nova narrativa, Ofélia é a protagonista. Através das figuras da rainha, da mãe, da bruxa, e, principalmente, da dama de companhia, que deixa seu papel subalterno, e se torna protagonista da própria história, observamos que as figuras femininas sobrelevam-se, nesse filme.
Constatamos que essas personagens são representações das novas configurações de poder, que estão em voga na contemporaneidade, e que são pautadas na ancestralidade e sabedoria femininas, e, sobretudo, na esperança de um futuro mais igualitário. Portanto, uma mesma história sempre pode ser contada sob outras perspectivas, e, assim, gerar novas histórias. Precisamos dar mais atenção às narrativas que são contadas pelos que não são favorecidos pelas estruturas de poder patriarcais, isto é, por todos que sofrem, simplesmente, por suas marcas de subjetivação – classe social, cor, gênero, idade, crenças etc –, tal como as mulheres e demais oprimidos.
REFERÊNCIAS:
OFÉLIA. Direção de Claire McCarthy. EUA e Reino Unido: Netflix, 2018.
PEREIRA, Lawrence Flores. ROSENFIELD, Kathrin. Ofélia, a invisível. In: LETRAS (UFSM), v. 2, 2020.
SHAKESPEARE, William. Hamlet [1601]. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Editores, 2019.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro [tradução José Simões]. São Paulo: Perspectiva, 2005.
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