De dezembro e outras coisas
O Natal é festa da presença, do encontro e da amizade, mas também da reflexão e da mudança de rumo, da conversão de valores e de percursos, do comprometimento concreto com a obra criada e sua transformação.
Fila de supermercado, avó e neta à frente, carrinho cheio. Visivelmente preparadas para a ceia do Natal. A criança de mais ou menos nove anos dispara:
– Vó! O Jesus que nasceu no Natal gostava de comer peru?
A avó sorridente responde:
– Não, querida, ele era uma criança que nasceu muito pobre. Comer peru no Natal é um costume, uma tradição, como comer chocolate na Páscoa.
– Hum...! Mas vó, todo mundo come peru no Natal? – retrucou.
– Não, filha, nem todos, cada um come o que tem no dia, alguns podem comprar peru, outros não e outros nem tem o que comer – respondeu a avó.
– Anhan... (um instante de silêncio...) mas vó, e Jesus não fica triste quando alguém não tem o que comer?
– Vamos, já estamos atrasadas para o seu inglês – a avó encerrou.
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Não por acaso, outra vez a inocência genuína da criança desperta em nós questionamentos tão perspicazes, capazes de nos incomodar a consciência. Duas gerações a dialogar sobre questões tão antigas, sobre o viver e o celebrar, o ter e o partilhar, o ser e o acreditar. De um lado a lucidez, a experiência, a prudência das respostas, de outro lado, a inocência de quem sabe que pode perguntar, mesmo que a resposta não venha.
O acontecimento histórico do nascimento de Jesus traz à tona grandes questões humanas, dramas antiquíssimos da humanidade, como a fome, a pobreza, a “falta de um lugar” (cf. Lc 2, 7b). Traz ainda a realidade da chegada daquela criança que viria e destoar do sistema vigente, constituindo-se como uma grande ameaça. A saga de José e Maria a procura de uma “hospedaria” desenrola-se numa verdadeira epopeia por entre os limites da tibieza do coração humano, o peso das estruturas sociais e o legalismo que escraviza e exclui.
A dor, a agonia da hora do parto, sintetizam a fragilidade humana visitada pelo toque divino na pureza daquela criança que veio “morar entre nós” (cf. Jo 1, 14). Aos pastores aparecem anjos a cantar uma opereta de paz e anunciar que “nasceu para nós um Salvador” (cf. Lc 2, 11). A criação inteira é imersa nesse instante sublime onde o céu e a terra dão-se o ósculo da paz.
O Natal é festa da presença, do encontro e da amizade, mas também da reflexão e da mudança de rumo, da conversão de valores e de percursos, do comprometimento concreto com a obra criada e sua transformação. É tempo oportuno de olhar ao redor, de aproximar-se, de dar o passo seguinte, inserir-se, encarnar-se. Um convite indistinto a todos a assumir mutuamente as dores, as angústias e as alegrias do outro. É nesse movimento de amor e entrega que o Filho de Deus nos visita e habita em nós.
A encarnação nos inspira uma metodologia de libertação. Os pobres não são e não deverão ser, jamais, sujeitos passivos desse processo. O chão da nossa história continua manchado do sangue da guerra, do suor escravo e da lógica perversa da exclusão. São muitos, centenas de milhares, de meninos e meninas no Oriente e no Ocidente sem lugar, sem colo e sem motivos para no Natal, ou fora dele, acender uma luz. Não há magia, nem encantamento. Para eles, o decreto de Herodes continua vigente, não deixando escapar sequer seus sonhos.
O menino de Belém, ao visitar-nos, se deixa também visitar, se deixa ver e tocar em sua forma mais vulnerável e indefesa, exatamente por aqueles que, guiados pelo sinal “dos anjos” e da “estrela”, vão ao encontro dessa novidade. Uma pessoa que “desce” e assume a caminhada humana, caminha por nossos passos e tece conosco o fio da história. Reacende nossos sonhos, ressignifica nossas dores e nos inspira atitudes novas.
Em cada casa, beco ou esquina, onde se acenda uma luz para recordar o Natal, onde a ceia ou “janta” for peru, peixe ou batata, ou onde faltar farinha e pirão, onde faltar gente para sentar à mesa, onde faltar a mesa para colocar o pão, onde o pão for escasso, mas sobrar união, haverá celebração. Também, aí, sobretudo ali, outra vez é dezembro, de novo é Natal.
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