COLUNA
Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Prof Michael Amorim

A face oculta de Lutero: intolerância e antissemitismo

É inegável que Lutero é uma das personalidades mais poderosas de toda a história; para o bem ou para o mal.

Prof Michael Amorim

No último dia 31 de Outubro comemorou-se 506 anos da Reforma Protestante. Nessa data, milhões de pessoas ao redor do mundo relembram quando Martinho Lutero, supostamente, fixou suas 95 teses na porta da Igreja local, desafiando, assim, a exploração romana da venda de indulgências e a tirania dos dogmas que fechavam o Reino dos Céu aos pobres e humildes. 

É inegável que Lutero é uma das personalidades mais poderosas de toda a história; para o bem ou para o mal. No entanto, como geralmente acontece, criou-se em torno da figura do Reformador uma aura que o deixa quase intocável; uma devoção tamanha, mesmo em meio católico, que faz com que muitos historiadores ignorem o fato de que, em Lutero, unem-se o reformador, o agitador, o cúmplice e o reacionário para formar uma personalidade complexa que, em muitos pontos, foi totalmente anti-humanista e contrária à liberdade. 

Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, no volume em que trata do Renascimento e da Reforma Protestante, lembra que a Reforma e Renascença se encontraram, sim, mas de um modo bem mais agressivo: quando os luteranos comandados pelo imperador Carlos V invadiram e saquearam a cidade de Roma, em 1527, destruindo o Humanismo Romano em torno da corte papal.

O filósofo Friedrich Nietzsche interpretou a Reforma como sendo um movimento radicalmente anti-renascentista e, nesse sentido, reacionário. Na Itália e na França, países onde a Renascença chegou a seu ápice, o Protestantismo não vingou: foi vencido e exterminado. Na Inglaterra o afastamento do Catolicismo e a aproximação do Protestantismo fez com que a Renascença chegasse com um atraso de um século. Já na terra natal do luteranismo, a Renascença só apareceu como produto de importação, e não durou muito.

Outro ponto a se chamar atenção é que esse Lutero defensor da tolerância e da liberdade dos povos só existe em fábulas posteriores, pois o verdadeiro Lutero, o Lutero de carne e osso, agia em nome dos príncipes alemães para prejudicar a Universitas Christiana através de um cisma religioso que lhes daria o poder. Não há nada mais intolerante que o famoso princípio protestante do cuius regio, eius religio (de quem é a região, dele se segue a religião), que determina que o senhor local tem o direito legítimo de impor a sua religião aos seus súditos. E de fato, essa foi a forma preferida de se propagar o protestantismo nas primeiras décadas da Reforma. 

Aliás, a intolerância luterana não atingiu apenas católicos – ou “papistas”, como eram chamados pejorativamente pelo reformador –, mas seus próprios irmãos protestantes. Na Alemanha, Lutero em pessoa exigiu perseguições aos Anabatistas, um ramo radical do protestantismo que não aceitava os “dogmas” Luteranos. Essa atitude causou diretamente o exílio, o encarceramento, a tortura e o assassinato de milhares de camponeses. Tomas Munzer, o líder dos anabatistas, teve sua cabeça cortada fora, como prévia do período mais sangrento da Revolução Francesa com sua guilhotina. 

No colóquio de Marburg (1529), Lutero acusou um outro reformador, Zuínglio, de Anticristo, um recurso constante em seus escritos – em 1520, no livro À Nobreza Cristã da Nação Alemã, já havia identificado o Papa com o Anticristo –; e chamou seus seguidores de “demônios fanáticos”. Exemplos como esse são numerosos na vida de Lutero, que jamais tolerou a menor dissidência religiosa e sempre perseguiu, com a ferocidade com que o Apóstolo Paulo, antes da visão no caminho de Damasco, perseguia os primeiros cristãos. Esse desejo de conseguir submissão pela força e pela violência não surgiu com sua versão protestante. Ainda na juventude escrevia que estava preparado para ser um “assassino brutal” e tirar a vida de quem se atrevesse a negar a autoridade do Papa.

O forte antissemitismo do pai da Reforma é outro lado de sua vida pouco comentado. Em seu artigo Martinho Lutero Como a Escola Nunca Ensinou: Anti-latino e Antissemita, publicado no El País, em 24 de junho de 2017, María Elvira Roca Barea lembra que Lutero, além de anti-latino – foi em seu tempo que o adjetivo welsch passou a significar ao mesmo tempo latino e imoral, ou malvado – era profundamente antissemita. O pai da reforma dedicou, no livro 'Sobre os Judeus e Suas Mentiras', escrito em 1543, parágrafos horripilantes aos judeus: 

“Devemos primeiro atear fogo às suas sinagogas e escolas, sepultar e cobrir com lixo o que não incendiarmos, para que nenhum homem volte a ver deles pedra ou cinza.”

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O programa nazista, como bem disse o filósofo alemão Karl Jasper, está prefigurado em Martinho Lutero. Hitler, não por acaso, propagava, durante as eleições de 1933, um cartaz no qual a cruz gamada dividia espaço com a imagem de Lutero.

Lutero era um grande orador, isso é de conhecimento amplo de todos os que já ouviram alguma vez sobre sua Reforma. O que não se ouve em lugar algum é que seu talento foi posto quase que inteiramente a serviço dos príncipes contra qualquer um que os desafiassem. As pregações da época em viveu Lutero geralmente inflamavam revoltas populares, e com as dele não foi diferente. Em 1524, explica María Elvira Roca Barea, estourou a revolta que ficou conhecida como Guerra dos Camponeses, a mais importante revolta popular da Europa até a Revolução Francesa. Lutero, percebendo a magnitude do conflito, escolheu seu lado: o dos príncipes contra os camponeses. Homens e mulheres esmagados sem dó nem piedade, enquanto o pai da Reforma condenava suas almas ao mais profundo inferno.

Para “santificar” a reação sangrenta e implacável dos príncipes, Lutero escreveu um texto onde dava total apoio aos senhores alemães e condenava veementemente qualquer espécie de revolta vinda do povo contra o principado. Intitulou a obra de Contra as Hordas de Camponeses Assassinos e Ladrões, onde pode-se ler

“[...] mergulho a minha pena no sangue: os seus membros devem ser aniquilados, estrangulados, esfaqueados, secreta ou publicamente, por quem possa fazê-lo como se matasse cachorros loucos”.

E esse mesmo tom será usado repetidas vezes por Lutero em seus panfletos e escritos contra o catolicismo. 

Aos críticos da Inquisição recomendo urgentemente a leitura do livro A Inquisição: um tribunal de misericórdia, do Cristian Iturralde. E já que exibem tanta santidade e temor a Deus, deveriam fazer mea culpa por todos os crimes, abusos e difamação cometidos contra os católicos e contra seus próprios irmãos protestantes antes de apontarem os erros da Igreja Católica (que existem, é claro, mas isso é assunto para um ensaio posterior). É recomendação bíblica: tira primeiro a trave do teu olho. 

São Luís, 01 de Novembro de 2023, solenidade de Todos os Santos. 

 

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