Samanta Schweblin e o mundo assombrado pelos homens
A autora argentina, dentre outros atributos, tem a capacidade de assombrar o leitor simplesmente desafiando-o a colocar um espelho diante de si.
"É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós", nos ensina José Saramago (1922 – 2010) em O Conto da Ilha Desconhecida (1997). Há muitas coisas que, de tão entranhadas, naturalizadas, nos parecem inevitáveis. Em Kentukis, publicado originalmente em 2018, a escritora argentina Samanta Schweblin – que, de acordo com Mario Vargas Llosa (1936 – ), é uma das escritoras contemporâneas mais promissoras da língua espanhola – sai da ilha e nos leva juntos.
Tivesse sido escrito há algumas décadas, poderia se dizer que o romance de Samanta Schweblin trata-se de uma distopia. Mas não, escrito recentemente, o mundo idealizado pela autora é o mesmo de agora, embora propositalmente distorcido – pelo menos em parte –, para que o leitor tome distância de sua própria realidade e, assim, seja capaz de reinterpretá-la.
Kentukis são bichos de pelúcia que podem variar quanto ao tipo: dragão, coelho, toupeira, urso panda, corvo, etc. No entanto, em comum, todos possuem uma câmera situada atrás dos olhos. No mundo proposto pela escritora argentina, os kentukis são a nova febre do momento. Espalhados por todo o globo, os usuários dessa nova moda se dividem entre "amos" – os donos dos kentukis, que os têm em casa ou qualquer outro lugar – e "seres" – os que ficam por trás das câmeras.
Quem tem um kentuki não sabe quem está por trás da câmera. Pode ser uma pessoa em qualquer parte do planeta. Por sua vez, essa pessoa que está por trás do kentuki tem acesso a tudo o que o seu "amo" lhe mostra e diz. No entanto, não pode falar, mas apenas emitir alguns chiados.
O romance é estruturado a partir de capítulos curtos, que, às vezes, lembram contos, no sentido de que se encerram neles mesmos. Por outro lado, há cinco personagens que são mais desenvolvidos ao longo de vários capítulos da obra.
Um dos pontos altos do livro é a maneira peculiar com que cada personagem lida com seu kentuki ou com o fato de "ser" um kentuki. Em comum, todos os personagens descobrem uma maneira de comunicação com seu kentuki – que não fala – ou com seu "amo". Não basta ver ou ser visto, o ser humano carece de se comunicar.
Seja como tentativa de superar a solidão e de construir relações afetivas, de se manter informado a respeito do que acontece em locais geograficamente distantes do nosso ou mesmo como ferramenta para crimes anônimos, como extorsão e pedofilia, por exemplo, o uso dos kentukis, ao fim e ao cabo, não difere tanto do que já vivemos hoje, diante das infinitas possibilidades que o mundo virtual nos oferece.
A partir do advento das redes sociais, a possibilidade de ver e de ser visto, inclusive anonimamente, de opinar sobre fatos que ocorrem perto ou do outro lado do mundo, e que, muitas vezes, dizem respeito a assuntos sobre os quais nunca nos aprofundarmos, gera a sensação de que somos mais do que realmente somos e de que podemos mais do que realmente podemos; há uma fusão da identidade real com a virtual.
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Só o futuro dirá o que há de vir de uma geração como a nossa, em que o homem privado jaz em estado terminal. O homem público, por sua vez, esse que oscila entre a vida analógica e a virtual, ainda precisa aprender a andar sobre essa corda bamba. Por quanto tempo ainda ele conseguirá se manter de pé? Essa é a pergunta que Samanta Schweblin nos deixa a partir dessa intrigante obra.
"O mundo está mudado: eu sinto na água, eu sinto na terra, eu farejo no ar", embora seja uma frase de O Senhor dos Anéis (1954 – 1955), se aplica muito bem ao contexto do livro Distância de Resgate (2014), também de Schweblin.
No entanto, se na obra de Tolkien (1892 – 1973), dentre outros aspectos, há forte denúncia contra o desmatamento e a destruição de florestas, no livro da escritora argentina, a denúncia é contra o abuso do uso de agrotóxicos na Argentina, visto ser esse um grave problema encontrado país. Os habitantes da zona rural, que residem próximo às plantações, são os mais prejudicados com a prática. Crianças deformadas, transtornos neurológicos, adultos envenenados, morrendo precocemente e/ou carregando sequelas para o resto da vida, são alguns dos efeitos colaterais do agronegócio.
A obra apresenta duas mães, Carla e Amanda. Amanda vai com a filha, Nina, passar um tempo numa pequena cidade no interior da Argentina. Lá, conhece Carla, residente no local desde a infância. Boa anfitriã, resolve levar um balde d'água para a mais nova vizinha, lhe avisando que tenha cuidado com a água do local.
Mas Carla guarda um segredo tenebroso, que, em certa ocasião, já estabelecida a afinidade com Amanda, resolve lhe contar. É sobre seu filho, David, que, após ingestão de água contaminada, foi submetido a um procedimento cruel, mas necessário para sua sobrevivência. Depois disso, a vida de David e de Carla nunca mais foi a mesma. Ademais, depois desse encontro entre Amanda e Carla, Nina, David e os maridos de ambas as mulheres têm a vida transformada para sempre.
O livro mescla drama familiar, suspense psicológico e, até mesmo, elementos de terror, e consegue demonstrar como um assunto aparentemente tão distante da nossa realidade – os abusos do agronegócio –, na verdade, está mais próximo do que imaginamos. Afinal de contas, mesmo mães como Amanda, que não param de calcular a "distância de resgate", ou seja, o tempo que levariam para socorrer um filho em caso de perigo, podem ficar impotentes quando o perigo que ronda é invisível e servido à mesa.
A escrita de Samanta Schweblin, em ambas as obras, merece destaque. Experimental e visceral, pode causar algum estranhamento ao leitor num primeiro momento. Em Distância de Resgate, particularmente, os tempos não são lineares e o fluxo de consciência das personagens se interpõe a alguns diálogos. Passado esse estranhamento inicial, no entanto, pode-se constatar a genialidade da autora, que, dentre outros atributos, tem a capacidade de assombrar o leitor simplesmente desafiando-o a colocar um espelho diante de si.
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