COLUNA
Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Prof Michael Amorim

A angústia do Não-Ser

Mais cedo ou mais tarde, todos estaremos diante da Eternidade. Sozinhos, como Nosso Senhor pregado na Cruz.

Prof Michael Amorim

Atualizada em 09/11/2023 às 13h57

Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

[…]

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.

Bocage

Certa vez, quando eu tinha 8 anos e estava caminhando com o meu pai, nos deparamos com um cortejo fúnebre. Cidade pequena, todos se conheciam. Paramos por um instante em respeito ao falecido. Não lembro se já havia visto aquela cena antes, mas foi ali a primeira vez que aquela imagem do caixão sendo carregado em procissão mexeu comigo. Disse ao meu pai:

— Que tristeza.

No que ele respondeu:

— Sim. Mas infelizmente não há como fugir. Todos vamos morrer um dia.

Silêncio. Continuamos andando. Eu estava calado. Estava estarrecido. Nunca havia pensado nisso antes e, de repente, repetia para mim mesmo:

— Mas até eu? Eu irei morrer? Não mais existirá um “eu”?

Com profunda tristeza, referia-me à voz interna que se usa para falar consigo mesmo. O que hoje sei tratar-se do que somos, com quem convivemos e conversamos mais intimamente. Aquela parte de você que é você de fato. Não a voz polida ou meiga, assustada ou intimidadora que usamos para falar com os outros e conseguir que pensem que somos o que queremos que pensem que somos. Não, o EU de fato. Aquilo que muitos chamam de consciência. É óbvio que na época não pus as coisas nestes termos. Estava apenas espantado com a idéia da “vozinha” da minha cabeça desaparecer para sempre.

Não lembro se cheguei a externar estas dúvidas com meu pai, mas durante todo aquele percurso, estas questões não me saiam da cabeça. Era inconcebível, para mim, a idéia de que um dia essa voz calaria. Deixaria de existir. Passaria ao Não-Ser.

Fiquei dias com esta angústia. E a pergunta, por mais que tentasse escapar ocupando minha mente com outras coisas, teimava em voltar:

— Não mais existirá um “Eu”?

Essa, pelo que me lembro, foi minha primeira experiência com o Não-Ser. A primeira vez que me pus a pensar no vazio da não-existência, no abismo do esquecimento e na frieza da morte.

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Só fui sentir a mesma coisa anos mais tarde, já na faculdade. Ao estudar mitologia comparada, no curso de Filosofia, passei por umas crises de fé que, embora tenham durado pouco tempo, fizeram-me experienciar a terrível sensação de não haver um sentido na vida. Viktor Frankl, psicólogo e judeu sobrevivente de Auschwitz, acreditava que o que nos mantém de pé, mesmo em meio aos maiores sofrimentos, é a existência de um sentido. Um homem que não vê propósito para sua existência é um homem sem esperança. Um homem incapaz de olhar para o céu. Ateísmo, no fim das contas, é isto: a perda total do sentido da existência. Por isso creio haver pouquíssimos ateus. A maioria esforça-se para criar um sentido para suas ações, mesmo negando-o de antemão.

 

Esse sentido é o que nos torna humanos de fato. O que nos faz ter consciência de que fomos feitos para a Eternidade. Uma verdade já declarada pelos antigos sábios da era pré-cristã, e confirmada depois pela Revelação. Sempre que releio o diálogo Fédon, de Platão, fica claro que Sócrates foi uma daquelas pessoas de liberdade interior das quais falava Frankl, um dos raros homens cuja vida espiritual estava acima da situação em que se encontrava: nem mesmo a morte poderia tirar sua paz de espírito. Um grande homem. Uma grande alma.

É uma constante na história humana que o sofrimento do corpo, muito mais que um impulso para o desespero, é um convite para o cultivo da vida interior. Ou, como diria Dostoiévski, para que sejamos merecedores do nosso sofrimento. Não raro em sociedades de grande confusão intelectual, corrupção e degeneração moral é que surgem as maiores filosofias, como uma forma de restaurar a ordem externa, da sociedade, pela ordem interna, da alma do filósofo.

Conta-se que Mário Ferreira dos Santos, grande filósofo brasileiro – desgraçadamente esquecido –, em seu leito de morte, pediu para ser erguido pelos familiares. “Quero morrer de pé, como um homem”, disse. E assim o fez. Expirou de pé rezando as palavras do Pai-Nosso. Nomes como o Apóstolo São Paulo, Boécio, Zubiri, Husserl, Camilo Castelo Branco, Graciliano Ramos, Viktor Frankl e tantos outros, produziram escritos eternos de valor inestimável em condições adversas de repressão e perseguição extrema, pois não estavam mais preocupados com o destino de seus corpos, mas elevaram o pensamento até a eternidade. 

Sêneca, em seu clássico estoico Sobre a Brevidade da Vida, advertia sobre uma verdade que nossa época tenta, a todo custo, negar: a morte é inevitável. Mais cedo ou mais tarde, todos estaremos diante da Eternidade. Sozinhos, como Nosso Senhor pregado na Cruz. E aqui não quero dizer que não devemos sentir medo, ou que não haverá dúvidas e incertezas diante de nosso inexorável destino.  "Tendes medo de tudo como mortais, desejais tudo como imortais.", dizia Sêneca. "Tudo que eu sei é que devo morrer em breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar", escreveu Pascal.

Hoje, mesmo católico, crente na imortalidade da alma, na ressurreição da carne e na vida eterna, vez ou outra pego-me olhando para o vazio e questionando: “E se não houver nada? E se tudo for uma profunda e tenebrosa escuridão?”. E, então, aquele garoto de oito anos, angustiado com a idéia de perder a consciência, reaparece, pois ele sou eu. Não tratava-se de outra pessoa, era eu. O mesmo eu que num momento passado do processo histórico temporal, que é só uma parte ínfima de minha existência como alma imortal, questionava coisas que somente depois de quase 20 anos iria compreender: que somos uma alma imortal e essa vida é só um rascunho, como dizia o poeta Bruno Tolentino.

Não há como fugir — dizia Sêneca e disse o meu pai naquela ocasião. Por mais que o homem finja que superou esse dilema, a pergunta de Leibniz, filosófica por excelência, se mantém: por que existe algo ao invés de nada? Se a vida termina no túmulo não há razão para bem viver, aliás, não há razão para nada. Todas as preocupações, por mais bem argumentadas que sejam, desaparecem quando nos deparamos com a escuridão da morte. 

Pascal nos diz, em seus Pensées (Pensamentos), que o conhecimento da corrupção humana sem o conhecimento de Deus gera desespero. E acho que foi Chesterton quem disse que toda forma de desespero é ateísmo. Ao perder de vista o céu, o homem limita formidavelmente seu horizonte de consciência e, ao perder de vista o Ser-princípio, a Verdade por excelência, restam apenas os entes particulares e as opiniões mutáveis. Perdendo de vista a metafísica, tudo se mundaniza: perde-se a noção de transcendência e instaura-se o império da antifilosofia, da filodoxia ou, se preferirem, do sofisma. 

Ao perder de vista a eternidade sobra, para o homem de alma pequena, o provisório; na falta do Sol da Verdade, as trevas do efêmero e o brilho fosco da mediocridade atraem os olhares sedentos por luz. Olhos que, buscando substituir a fonte eterna da felicidade por prazeres passageiros, rastejam na lama do empirismo e concluem: “só existe a ação, nada mais”. Afinal, se existe apenas o mundano, o reino das opiniões, conclui-se que tudo que importa é, de fato, transformar o mundo — como queria Marx. As verdades, inacessíveis aos sentidos e resistentes às almas medíocres, são deixadas de lado em nome do útil e do prático. Em nome da Revolução.

É essa noção de Verdade, de pertença ao Ser, que faz da sociedade não um mecanismo sem vida, uma competição de força, mas um organismo orgânico onde existe moral, direito e religião. Áreas que não estão limitadas pelo aqui e agora, pela mediocridade do momento, mas que se desdobram e atualizam continuando verdadeiras, caso não percam de vista o princípio que as sustenta.

Fomos criados para estarmos unidos ao autor da vida — “vida de minha vida”, diz Santo Agostinho –, mas Dele nos separamos, como uma flecha lançada que nunca chega ao alvo, ao contrário, Dele é afastada por uma força invencível. Escreveu o Apóstolo: “Porque é Nele que temos a vida, o movimento e o Ser (At 17,28)”. As miseráveis almas desesperadas, por terem em vida optado pelo “não”, por terem fechado para si as portas da Eternidade e da metafísica, dizem, parodiando o Apóstolo: “Porque é Nele que não temos vida, não temos o movimento e não temos o Ser”. Santo Agostinho nos ensina em suas Confissões que as coisas só existem porque provêm de Deus, o Ser perfeito e imutável, sempre igual a si mesmo, o próprio princípio da Identidade descoberto pela lógica Clássica, onde não há mudança nem sombra de variação (São Tiago 1,17).

A morte é a única certeza que temos. "É preciso durante toda a vida aprender a viver e, o que talvez cause maior admiração, é preciso durante toda a vida aprender a morrer.", exprime Sêneca. Estarmos preparados para esse inadiável encontro com Deus, com o Ser, é a coisa mais importante que existe, pois é Ele quem sustenta os entes não perfeitos e corruptíveis: “Nele existimos”. Longe da fonte da existência, resta o deserto da não-existência. “Bom para mim é apegar-me com Deus”, declara o Bispo de Hipona citando o Salmo de número 72,28, e prossegue dizendo “Porque se eu não permanecer Nele, tampouco poderei permanecer em mim mesmo”.

No fim das contas, isso é tudo o que importa. Shakespeare estava certo. Ser ou não ser — eis a questão.

São Luís, solenidade dos fiéis defuntos.

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