Crítica

Crítico analisa filme Ato de Coragem

Para Márcio Sallem, o longa pode ser definido como: 'soldados reais em um filme de ação ruim'.

Márcio Sallem

Atualizada em 27/03/2022 às 12h18

Se o Tio Sam, o velhinho de cartola símbolo dos Estados Unidos, dedo indicador em riste e os dizeres “eu quero você” convocando jovens para se alistarem no exército, pudesse elaborar uma lista de seus melhores filmes, Ato de Coragem certamente estaria no topo. Propaganda belicista disfarçada de homenagem aos seus heróis da vida real, os fuzileiros navais, o filme tenta resgatar o orgulho patriótico norte-americano, mas somente consegue dar provas contundentes da repugnante indústria de guerra: a paranoia e alienação alimentadas ao público nas terras gringas, a mania de perseguição instaurada pelo governo, pois “todos querem matar norte-americanos”, e um complexo de super-homem desde o instante em que vestem os uniformes, permitindo até mesmo que a costura da bandeira interrompa a trajetória de um foguete disparado à queima-roupa. Não é arte e/ou entretenimento, só um vergonhoso instrumento de recrutamento de jovens para perecerem nas areais quentes do Oriente Médio ou outra região que os Estados Unidos venham meter o nariz na sua cruzada pela defesa da democracia.

Dirigido por Mike McCoy e Scott Waugh, ex-dublês, e escrito por Kurt Johnstad (de 300 que não primava pela sutileza), o roteiro apresenta fuzileiros navais reais, ou como afirma a narração em voice over, “guardas da liberdade contra as forças do terror e da tirania”, convocados para resgatar a agente disfarçada da CIA Lisa Morales mantida refém pelo perigoso traficante Christo. Depois da missão, eles descobrem que Abu Shabal, um fanático terrorista, planeja um atentando ainda maior do que o 11 de setembro no solo americano. Em uma corrida contra o tempo para impedir os planos genocidas desse lunático, os soldados partem para defender valores nobres como a honra, liberdade, justiça, família e o estilo de vida americano, em uma missão de alta complexidade no México. Agora, se esta sinopse padrão de um filme de ação B da década de 80 foi capaz de irritá-lo, você ainda não chegou na pior parte.

Claramente incapaz de produzir um conteúdo imaculado pela ideologia beligerante republicana,Ato de Coragem também não funciona como exemplar do cinema de ação. Mas como poderia, se os diretores parecem ter perdido mais tempo jogando o videogame Call of Duty e similares do que decupando as confusas sequências de ação? Assim, limitados à perspectiva de primeira pessoa com a câmera acoplada na arma e o uso excessivo da câmera subjetiva, a dupla sequer consegue esclarecer a geografia das cenas – onde estão os personagens durante o tiroteio na região do tráfico mexicano? – e transforma os inevitáveis confrontos armados em orgias de tiros disparados para todos os cantos. E, para piorar mais, a montagem retalha as sequências beirando a incompreensão o que acaba provando a inspiração dos cineastas em Falcão Negro em Perigo, não obstante, outro filme panfletário e intransigente sobre a guerra.

Por sua vez, as missões também não exigem grandes demonstrações de coragem, exceto uma pontual já no terceiro ato, e mesmo as bem-planejadas e executadas ações táticas (grandes emboscadas, na verdade) eventualmente cansam pela repetitividade de um franco-atirador eliminando os inimigos até que o restante da equipe conclua o seu objetivo. Porém, é a visão maniqueísta dos “arautos da liberdade” e dos terroristas o que mais incomoda na narrativa: Christo, embora humanizado por sua família, comanda a dolorosa tortura de Lisa explorada com requintes de crueldade, já Abu não demonstra remorso em matar dezenas de crianças além de ostentar uma enorme cicatriz no rosto para mostrar a sua maldade e andar batendo o pé e fazendo bico; enquanto isso, os heróis não se desviam nem um centímetro do politicamente correto e até evitam ameaçar para obter informações vitais, como no interrogatório em que o comandante limita-se a afirmar que um vilão passará tempo longe de sua família, mesmo podendo ir mais além na sua intimidação.

Porém, se o chamariz do projeto é a presença de fuzileiros navais reais interpretando a si mesmos, o roteiro falha em torná-los personagens tridimensionais, e sob a pesada camuflagem todos parecem iguais, não homens, mas pedaços de uma única ideia militar. A desastrada inclusão de dramas pessoais artificiais prejudica mais a narrativa, e o desejo de Rorke de cumprir a sua promessa e retornar à família é incessantemente martelada na cabeça do público com a aborrecida afirmação de que os soldados estão “sempre tentando chegar em casa”. Finalmente, apresentados impessoalmente não pelo que são, mas pela quantidade de idas aos combates, aqueles fuzileiros ingenuamente revelam o pior aos jovens: a banalização da guerra, nada mais do que um trabalho corriqueiro e imprescindível, e um equivocado senso de indestrutibilidade, atenuado somente para explorar alguma virtude dos soldados, como o poder de sacrificar-se pelo próximo.

Com a péssima fotografia de Shane Hurlbut que distorce as tonalidades do pôr-de-sol e mostra-se incapaz de lidar com a luminosidade excessiva, e a inexplicável decisão de usar os ângulos mais obtusos durante um simples diálogo no navio, Ato de Coragem mal consegue tocar na sola das botas dos verdadeiros fuzileiros navais. Muitos deles, homens iludidos pela cruel propaganda de que a única contribuição que podem dar ao seu país passe pelos caminhos do combate. Para eles, infelizmente, a casa é um sonho distante e idílico, ameaçada não por sádicos, déspotas e terroristas, mas por aqueles sujeitos que lucram com a guerra e certamente patrocinaram essa bobagem reprovável.

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