A adaptação das páginas de um livro para a tela do cinema não vem sem as inevitáveis concessões que permitem o intercâmbio do espírito da obra de uma mídia para a outra. Não se está exigindo a fidelidade do papel carbono, algo impraticável em face das óbvias diferenças entre as maneiras de contar histórias; mas, sobretudo, a preservação da singularidade e honestidade emanadas do texto literário. Se nos livros, rabiscamos um mundo na imaginação e convivemos as vezes dias com personagens, no cinema a experiência é explícita e as instâncias individuais dos leitores cedem espaço a uma única visão: a do diretor. A duração mais curta também despreza ou subverte dilemas e traços de personalidade que, para uns, eram essenciais para a identificação, o que é um dos graves defeitos deste irregular, embora belo, Na Estrada.
Fruto de uma juventude rebelde e letrada nos escritos de James Joyce, Marcel Proust e Arthur Schopenhauer, transbordando sentimento hippie para digerir o cinismo e o luto depois de finda a segunda guerra mundial, a alma da obra-prima de Jack Kerouac parece permear a adaptação de José Rivera no elemento menos central: a estrada. Símbolo do despojamento de jovens que poderiam viver com alguns trocados no bolso em orgias de benzedrina e maconha, e do autoconhecimento proporcionado pela comunhão humana, em prosas contadas nas caronas por desconhecidos, aquela geração afligia-se na busca de identidade. O que explica a admiração extenuante de Sal Paradise por Dean Moriarty e o estilo de vida irresponsável e promíscuo deste. Muito mais, porém, do que a procura agonizante por um propósito, a estrada revelava rostos a sonhos, desejos e anseios (o que o elenco coadjuvante recheado de nomes conhecidos faz bem). Assim, não esperava descobrir na jornada de Sal a mesquinhez e frivolidade de um aborrecido intelectual.
Isso fica evidente desde uma das primeiras cenas quando Sal dispensa o guarda-chuva durante um funeral debaixo de forte chuva: talvez ele quisesse vivenciar plenamente o luto, mas conseguiu apenas parecer tolo e inconsequente como suas demais ações viriam a provar. Autor de pequenos furtos de gasolina e de comida, sob a desculpa esdrúxula do mantra do presidente Truman de diminuição do custo de vida, as motivações de Sal não se tornam claras para o espectador e tampouco a narração in off deslocada ajuda nesta tarefa, mal esclarecendo também o que o jovem procurava descobrir (ou se ele procurava algo, exceto o nada). Mais grave ainda é o seu relacionamento com Dean e o respeito inicialmente sugerido revelava o egoísmo de alguém sugando a ilimitada energia de vida do outro, e a atuação enfadonha de Sam Riley, um clone mal acabado de Leonardo DiCaprio, sequer consegue disfarçar as incongruências do protagonista.
Felizmente, Dean surge mais complexo, o retrato de alguém que esconde na atribulada vida sexual e imponente domínio emocional sobre os demais, a amargura da existência incompleta no abandono do pai. Sujeito de contrastes, impulsivo e vivaz interpretado extraordinariamente por Garrett Hedlund (Tron: O Legado), a narrativa ganha bastante ao acompanhar a banalização de um imã dissipando na insignificante imagem no espelho retrovisor. Outra que esta bem é Kristen Stewart, interpretando Marylou, esposa de Dean, apresentando uma sensualidade e erotismo inéditos e abandonando os trejeitos irritantes de Bella (embora, em certo momento, estes se tornem visíveis no histerismo ao ser largada na porta de hotel).
Neste autêntico road movie, que não vai a lugar nenhum e está apenas indo, como um personagem oportunamente menciona, a direção de Walter Salles captura com sucesso as inseguranças sociais daquele período: a influência do jazz, o escapismo de romper as amarras no sonho de gozar a liberdade plena e a camaradagem de homens que cansaram de lutar entre si. Nem o esperado tom episódico macula o trabalho de direção porque não demonstra a preguiça de uma narrativa que não tem história para contar, pelo contrário, é um fim em si próprio, indissociável na descoberta daqueles homens por se introjectar nas suas personalidades. Além do mais, a trilha sonora de Gustavo Santaolalla torna prazerosa a viagem de Sal e Dean.
O movimento constante dos personagens também permite a Walter Salles explorar a mise-en-scène de forma inteligente: após Dean abandonar Nova York pela primeira vez, Sal caminha em sentido contrário ao quadro, vivendo a ausência do recém conhecido amigo; noutras vezes, a espontaneidade dos personagens rumo ao desconhecido é representado pelo fluxo normal, da esquerda para direita. Divagando mais adiante, geograficamente o diretor exibe este interessante contraste, e os retornos de Nova York para Denver (do litoral leste para o centro-oeste) ajudam a ressaltar a necessidade de Dean em encarar o passado e a responsabilidade, ou seja, seu relacionamento com Camille (Kirsten Dunst).
Mas, embora reconheça ser tecnicamente um esforço louvável, não tenho como defender esta adaptação incapaz de conquistar o coração do espectador como Jack Kerouac fez com a sua obra-prima. Assim, Na Estrada é muito mais um filme para ser visto do que sentido, diluindo o espírito da obra no vazio imensurável da desilusão e frustração.
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