Crítica

Terapia familiar para deuses no decepcionante Fúria de Titãs 2

Se não bastasse o dramalhão, os roteiristas incluem embaraçosos diálogos.

Márcio Sallem

Atualizada em 27/03/2022 às 12h23

Grandes contos heróicos parecem ter um espaço cativo no imaginário popular com histórias de superação, perseverança e coragem que tanto motivam quanto empolgam. Parece que somos tão dependentes de feitos indizíveis e extraordinários quanto os deuses do Olímpio são das orações de seus fiéis adoradores, e nesse ínterim, a mitologia grega eternamente será um repositório de lendárias vitórias de mortais e semideuses que não acataram pacificamente a submissão ao reino dos deuses. Porém, a considerar pela escassez de boas produções inspiradas no fértil celeiro cultural grego, Fúria de Titãs e Imortais eram decepcionantes, e a infelicidade desta continuação, poderemos prever uma assustadora estiagem de bons mitos transportados ao cinema.

Em Fúria de Titãs 2, Perseu (Worthington), pescador e filho rebelde de Zeus (Neeson), anos depois de decapitar a górgona Medusa e destruir o Kraken, surge mais interessado em zelar pela segurança do filho Helius (Bell) do que de assumir seu lugar ao lado do pai no monte Olímpio. Enquanto isso, Hades (Fiennes) e Ares (Ramírez), o ciumento e rancoroso filho divino de Zeus, armam um plano para libertar o titã Cronos, o pai dos deuses, de sua prisão no Tártaro, o que envolve o sequestro e o roubo dos poderes (?) de Zeus. Para salvá-lo, Perseu une-se a Agenor (Kebbel), filho de Poseidon (eu pensara que era o Percy Jackson), e a rainha Andrômeda (Pike) para encontrar o deus caído Hefesto (Nighy) que conhece os caminhos para o submundo.

Se você pensou o mesmo que eu, esse fiapo de história, que de mitológico tem apenas os personagens, é a desculpa para que Perseu e seus amigos atravessem incontáveis perigos para, ultimamente, desafiar o titã Cronos, salvar Zeus e trazer paz à Terra novamente. Mas, os roteiristas Dan Mazeau e David Johnson, insatisfeitos em escrever apenas um grande e episódico videogame, com direito a fases bem definidas e a chefes no final de cada uma delas (a Quimera, os Ciclopes, Ares, o Minotauro, os titãs frente/verso - na falta de terminologia melhor – e, por fim, Cronos), destilam uma terapia barata entre pais, filhos e irmãos frustrados, carentes e ansioso por um pedido de desculpas. Assim, incapaz de lidar com o desmedido amor de Zeus por Perseu, Ares parte em busca de matar o meio-irmão; já Hades demonstra ressentimento de ter sido abandonado no submundo... e Cronos, bem, preso há milênios pelos filhos, quer apenas destruir todos.

Ora, se não bastasse o dramalhão envolvendo Perseu, Ares, Zeus e Hades (e, em grau menor, Agenor e Poseidon), os roteiristas incluem embaraçosos diálogos ("Conserte meu corpo, deixe minha alma para mim", diz Perseu certo momento), estúpidas ideias como cobrir o corpo de barro para proteger contra o banho de fogo lançado por Cronos e a mudança de comportamento de Hades similar àquela tomada por Megatron no final de Transformers: O Lado Escuro da Lua. Incluindo certa adaga de madeira misteriosamente usada por Ares para encontrar Helius, os roteiristas mal conseguem enxergar a estapafúrdia decisão que descaracteriza o protecionismo paterno de Perseu, obrigando-o a usar o filho como isca para vencer uma batalha decisiva.

"Dirigido" por Jonathan Liebesman (cujo trabalho anterior foi o ruim Invasão do Mundo: Batalha de Los Angeles), as sequências de ação, que, supostamente, deveriam redimir os defeitos narrativos, padecem do grave equívoco de confundir ritmo e agilidade com esquizofrenia e estupro sensorial. Atirando-se de cabeça na linha de frente do combate, o que realizara, anteriormente, com resultados contestáveis, a agitada câmera de Jonathan Liebesman e a montagem compulsiva e cortes rápidos de Martin Walsh comprometem o menor prazer que o espectador poderia ter na narrativa, prejudicando decisivamente a experiência em 3D, a qual, mais uma vez, eu não recomendo. Como justificar, portanto, uma superprodução de 150 milhões de dólares que não tenha o rigor necessário para decupar, adequadamente, a luta contra o Minotauro ou a invasão dos monstros dupla-face do submundo? Não que não haja bons momentos, e destaco o curto plano sequência do ataque de Perseu a uma quimera, mas eles são escassos e breves e mal conseguem disfarçar o atônito olhar do espectador diante de um incompreensível labirinto.

Mais fácil de debochar do que de defender, em momento a versão de Gandalf do afetado e divertido Bill Nighy surge balbuciando alucinações com a coruja metálica Bubo e, convenientemente, desaparecem quando a lucidez é mais desejável do que a insanidade. Já Cronos tem uma aparência que remete a um tostado boneco de marshmallow Stay Puft de Os Caça-Fantasmas e dono de uma inércia narrativa que o torna o típico vilão anencéfalo mais preocupado em destruir tudo que vê. Mas, o que se poderia esperar de um diretor que se delicia com a visão subjetiva do Ciclope, sua principal decisão criativa, ou com cenários imponentes e incrivelmente desinteressantes, repetitivos e pouco funcionais, ou travellings verticais no único intuito de satisfazer quem pagou o ingresso mais caro do 3D.

Especializando-se no mocinho unidimensionalmente bonzinho e certinho que não se desvia do eixo esperado de um herói, Sam Worthington não tem muita dificuldade em lutar contra monstros criados em computador e, novamente, montar no dorso de Pégasus, ao passo que Liam Neeson, Danny Huston e Rosamund Pike demonstram um desinteresse estampado na monótona dicção. Porém, é realmente Ralph Fiennes e Edgar Ramírez os maiores prejudicados; se este adota uma inflexível gravura de vilão decepcionando depois da soberba interpretação em Carlos, aquele tem a ingrata tarefa de ser o deus aflito por questões emocionais transformando seu tom ameaçador do episódio anterior no ensaio para uma crise existencial pós-mortem.

Pois, por mais que a imortalidade pareça um anseio convincente de deuses desacostumados a temer o amanhã, o melhor lugar onde eles deveriam desabafar e lavar a roupa suja seria no divã da psicanálise... por toda a eternidade.

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