Economia Solidária

Mais conscientes, catadores de material reciclável cobram atenção do poder público

A inclusão dos catadores na cadeia produtiva da reciclagem está prevista em lei.

Jorge Martins / Imirante.com

Atualizada em 27/03/2022 às 11h51
Catadores da Ascamar pedem reconhecimento e valorização de seu trabalho. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)
Catadores da Ascamar pedem reconhecimento e valorização de seu trabalho. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)

SÃO LUÍS - Em meio a uma grande quantidade de papelão e outros resíduos empilhados em um terreno na Rua de São Pantaleão, encontra-se o galpão onde funciona a sede da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis do Maranhão (Ascamar). Foi lá que Maria Célia Lopes Dias e Maria José do Nascimento – respectivamente presidente e tesoureira da Ascamar - receberam a reportagem do Imirante.com para falar sobre o seu trabalho.

A conversa ocorreu no momento em que o galpão estava em plena atividade, com os catadores triando o material e organizando tudo em fardos prontos para serem vendidos. O som incessante da prensa amassando papelão e garrafas pet acompanhou toda a entrevista, em que as duas falaram sobre o ofício de catador e o trabalho da Ascamar.

Rotina de trabalho

Elas contam que o trabalho se inicia às 8h, quando começa a ser feita a separação do material que chega até a sede. “Todos pegam no pesado”, afirma Maria José. Segundo a tesoureira, são recolhidos papelão, ferro, alumínio, plástico, garrafas pet, papel branco, além de papel de revista e jornal. A maior parte desse resíduo vem de supermercados, órgãos públicos, condomínios e hotéis que possuem coleta seletiva, e também da Rua Grande, onde um grupo de associados cata o material reciclável no horário de fechamento do centro comercial.

O transporte do resíduo é facilitado por um caminhão próprio, adquirido pelos catadores em um edital da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Parte do material também é levada por um caminhão de coleta seletiva da prefeitura, que descarrega na Ascamar três vezes por semana. Ocasionalmente, algumas pessoas entregam o seu próprio resíduo no local. Após a triagem, o material é vendido a empresas especializadas que viabilizam sua reciclagem.

 Os catadores começam a separar e prensar o material logo pela manhã. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)
Os catadores começam a separar e prensar o material logo pela manhã. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)

Maria Célia explica que a Ascamar conta com um total de 16 catadores associados. Cada um deles costuma receber entre R$ 400 e R$ 500 mensais, dependendo do faturamento do período. “A gente coleta mais papelão”, acrescenta a líder dos catadores. O quilo desse tipo de resíduo é vendido por R$ 0,14 e a quantidade recolhida varia entre 22 e 34 toneladas por mês.

Benefícios de ser associado

Do faturamento mensal, desconta-se 5% para pagar as despesas da Ascamar e o restante é dividido entre os associados. Maria José atribui a esse desconto o fato de alguns catadores não aderirem a associações e cooperativas. Mas tanto ela quanto Maria Célia concordam que há mais benefícios para quem trabalha de forma organizada. “A gente está em sociedade, está em convívio com o grupo. Porque se eles já olham nós fardados, eles dizem que é uma associação. Mas se eles nos olharem assim a granel, eles pensam que podem meter a mão e fazer aquela baderna”, relata a presidente.

A inclusão de catadores na cadeia produtiva da reciclagem está prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei 12.305, de 2010. Entre as diversas medidas previstas na lei, estão a reciclagem de resíduos sólidos e a disposição final ambientalmente adequada de rejeitos, com o fim dos lixões em todo o território nacional. A PNRS determina que essas medidas sejam acompanhadas da emancipação econômica dos catadores, devendo o poder público facilitar a implementação de infraestrutura para cooperativas e associações.

Situação atual

As duas representantes da Ascamar chegaram a trabalhar juntas em lixões da capital antes de 2004, quando foi criada a associação. As catadoras afirmam que estão vivendo melhor do que quando não eram associadas. Ainda assim, reclamam da falta de atenção do poder público com relação ao seu trabalho. “O primordial é o galpão, que ainda não saiu. Olha aí como fica o material na chuva”, desabafa Maria Célia. Segundo a líder da associação, o espaço da sede não é suficiente para armazenar todo o resíduo, e a maior parte fica a céu aberto. Entre os inconvenientes relatados, está o prejuízo trazido pelas chuvas e por pequenos incêndios causados por pessoas que usam drogas no local durante a madrugada.

As catadoras mostraram o que sobrou do material depois do último incêndio. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)
As catadoras mostraram o que sobrou do material depois do último incêndio. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)

Um novo galpão teria sido prometido pela prefeitura, e a presidente da Ascamar afirma que o último compromisso firmado pelo município foi o de entregar as novas instalações até o mês de novembro. A tesoureira reforça que essa já seria uma promessa antiga. “Será que o nosso trabalho não tem valor? Eu fico procurando isso... Se a gente tirar uma garafa pet da natureza, está fazendo um bem tão grande tanto pra gente como pra sociedade toda”, pontua. A reportagem solicitou um posicionamento da prefeitura de São Luís, que não se manifestou sobre o novo galpão da Ascamar.

Auto-estima e preconceito

Maria Célia e Maria José contam que já sofreram muito preconceito por serem catadoras, sobretudo antes de serem associadas. “Olhavam e diziam que a gente era nojento”, relembra a presidente da Ascamar, que tem 63 anos, dos quais 27 foram dedicados à catação. Apesar de se sentirem um pouco mais respeitadas hoje em dia, as duas relatam que a discriminação ainda existe.

Maria Célia Lopes Dias, 63 anos, é presidente e sócia-fundadora da associação. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)
Maria Célia Lopes Dias, 63 anos, é presidente e sócia-fundadora da associação. (Foto: Jorge Martins / Imirante.com)

“Eu prefiro trabalhar disso do que pegar alguma coisa dos outros, roubar. Me orgulho do meu trabalho”, afirma Maria José, que tem 36 anos e começou a ser catadora para sustentar os filhos depois da morte do marido. Ela estudou até a 7ª série do fundamental e sempre ensina a importância do estudo para os cinco filhos. “Eu digo: ‘olha, vamos trabalhar, vamos estudar. E não pegue nada de ninguém, que isso é vergonhoso. Se você ajuntar um papelão ali na rua, isso não é vergonha’”, comenta.

Apesar de não terem concluído a educação básica, o conhecimento e a experiência adquiridos na Ascamar deram às catadoras a noção de seu papel na sociedade e a ideia de que seu trabalho precisa ser valorizado. Essa tomada de consciência é vista pelo secretário executivo da Cáritas Regional, Ricarte Almeida Santos, como uma das principais melhorias da atividade dos catadores. No Maranhão, a Cáritas já executou dois projetos de apoio a catadores de materiais recicláveis nos municípios de Imperatriz, Balsas e Buriticupu.

“Essa melhora é diferenciada de lugar pra lugar. O que se precisa mesmo são de políticas públicas específicas, coisa que ainda, a rigor, não existe no Maranhão. Mas ainda assim conseguimos perceber algumas conquistas”, comenta Ricarte. Entre essas melhorias, ele cita alguma capacidade de reciclagem em certas cooperativas, além de alguns acordos com a iniciativa privada e o poder público para acesso a materiais provenientes de coleta seletiva.

Cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos

“O prazo final para apresentação dos planos de gestão dos resíduos sólidos se expirou e a absoluta maioria dos municípios não conseguiu apresentar suas propostas. Há uma grande cegueira e insensibilidade por parte do poder público em relação aos catadores”, enfatiza o secretário executivo da Cáritas.

A reportagem procurou tanto a prefeitura da capital quanto o governo do Estado para tomar conhecimento de ações voltadas para a inclusão social dos catadores. Em nota, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semmam) disse que realiza reuniões mensais com associações de catadores. A Semmam afirma, ainda, que ofereceu a eles palestras sobre geração de renda por meio da reciclagem no ano passado. O órgão informou que planeja uma reunião no fim de agosto para debater estratégias de inclusão desses trabalhadores no Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos.

Já a nota enviada pela SEMA fala que o órgão é parte do comitê gestor do projeto “Pró-Catadores – Recuperando Vidas, Reintegrando Cidadania”, que abrange geração de trabalho e renda, capacitação, elevação de escolaridade, inclusão digital, saneamento, saúde, segurança, crédito, segurança alimentar, habitação e programas assistenciais. Segundo a tesoureira da Ascamar, a associação já foi chamada a participar de reuniões sobre a implementação desse projeto, mas contou que as ações de capacitação dos trabalhadores ainda não foram iniciadas.

Enquanto o novo galpão e outras ações voltadas para a melhoria das condições de trabalho não saem do papel, resta a Maria Célia, Maria José e a tantos outros catadores - da Ascamar e de outras associações e cooperativas do Estado – continuar lutando pelo reconhecimento e valorização do seu trabalho. Lembrando a burocracia que dificulta a chegada de benefícios, a tesoureira da Ascamar ironiza sobre o cumprimento da lei: “De papel o nosso galpão já está cheio”.

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