Educação

Metade dos recém-formados que usaram Fies está devendo parcelas

Falta de emprego e salário baixo dificultam pagamento; 1 milhão de contratos estão em atraso; o prazo para quitar o financiamento é de três vezes a duração do curso

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15
Gabriela Ferreira do Carmo, 28, está há cerca de um mês com emprego fixo; o pagamento do Fies consumirá quase metade do salário
Gabriela Ferreira do Carmo, 28, está há cerca de um mês com emprego fixo; o pagamento do Fies consumirá quase metade do salário (GABRIELA FERREIRA DO CARMO)

BRASÍLIA - Depois de dois anos de frustração ao não passar no vestibular para engenharia civil na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a possibilidade de financiar o curso em uma instituição privada parecia uma luz no fim do túnel.

“Venho de uma família muito simples, meus pais não fizeram faculdade. O ensino superior era um sonho”, diz Gabriela Ferreira do Carmo, 28. Quase três anos depois da graduação, a realidade de um país vivendo sucessivas crises fez o sonho ganhar ares de tormenta.

A amortização do Fies, financiamento estudantil que custeou sua formação, consome quase 50% de seu salário –e ela só começou a trabalhar formalmente há cerca de um mês. Ela paga cerca de R$ 750 mensais para quitar uma dívida total de quase R$ 110 mil. “Virou um pesadelo. Antigamente, a gente achava que diploma garantia emprego, mas não é assim.”

O prazo para quitar o financiamento é de três vezes a duração do curso. A maioria dos formados, portanto, tem 12 anos para concluir o pagamento.

Parcelas atrasadas

Segundo o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gestor do Fies, de janeiro a julho deste ano 1,085 milhão de recém-formados estavam com parcelas atrasadas há mais de 90 dias.

Depois da graduação, o beneficiário do financiamento tem 18 meses de carência até a amortização do contrato começar. Nesse intervalo de um ano e meio, ele paga R$ 50 mensais (ou R$ 150 a cada trimestre) referente aos juros.

O número de inadimplentes representa metade dos 2,1 milhões de financiamentos em fase de pagamento, e poderia ser ainda maior não fosse uma pausa nas cobranças.

No ano passado, uma lei publicada no início de julho suspendeu o pagamento da amortização do Fies, livrando temporariamente todos os recém-formados de parcelas, juros e renegociações. O alívio, porém, só vigorou até 31 de dezembro de 2020.

Quando a lei entrou em vigor, 54,3% dos contratos do Fies em fase de pagamento estavam inadimplentes, segundo o FNDE. Quando o ano terminou, o percentual tinha recuado para 50%.

O órgão gestor do financiamento diz que os números de inadimplentes são bastante dinâmicos, uma vez que há sempre novos contratos com pagamentos a serem iniciados e beneficiários que conseguem pagar o que estava em atraso.

Nos primeiros sete meses de 2019, o percentual de devedores em relação ao total de contratos em amortização era de 40,4%.

No mês passado, o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, disse que a inadimplência no programa coloca em risco a concessão de novos financiamentos. Afirmou também que, pelo grande número de devedores, entendia que “a universidade não é para todos.”

"Eles não têm ideia de que o fato de terem um diploma de ensino superior não é suficiente. É sim uma ferramenta importante, mas não suficiente no Brasil como hoje vivemos de ter garantido seu emprego, e depois eles não conseguem pagar o compromisso que fizeram", afirmou o ministro, na época.

Para Sólon Caldas, diretor-executivo da Abmes (Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior), o titular do MEC ignora a conjuntura e o histórico de dificuldades daqueles que usam o Fies.

“Não é uma crise recente. O desemprego já era alto e a pandemia o fez crescer”, diz. “O formado ficou inadimplente com o Fies, mas ele também deixou de pagar água, luz. O aluno está tendo de escolher entre comer ou pagar o financiamento. Cabe ao governo resolver a economia."

No trimestre encerrado em junho, o Brasil tinha 14,4 milhões de desempregados, o equivalente a 14,4% da população na força de trabalho.

Paloma Silva, 27, acreditava que o período de carência seria suficiente para que ela se estabelecesse como psicóloga.

Quando fechou o contrato em 2013, a simulação indicava uma parcela de amortização de R$ 280. Com o primeiro boleto, veio a surpresa: ele era de R$ 600. “Imagine, eu ganhava um pouco mais de um salário mínimo.”

Para ela, os estudantes são muito jovens quando fecham o contrato e têm pouco conhecimento sobre juros e correção monetária, ou mesmo sobre as regras do programa –se a mensalidade sobe, o valor futuro do financiamento também terá reajuste.

Muitos, como Paloma, vêm de famílias também pouco escolarizadas. Depois, renegociações são difíceis e dependem de iniciativa do Executivo. Houve uma rodada em 2019, mas apenas 2% aderiram. No ano passado, a lei que pausou as cobranças também abriu a possibilidade de quitação com redução de encargos.

“Sou de uma família muito simples e era muito nova quando entrei [no Fies]. Me programei para pagar menos de R$ 300, não R$ 600. Estou em um emprego melhor hoje e poderia estar vivendo melhor, poderia planejar uma pós, mas não consigo. É trabalhar para pagar o Fies.”

O potiguar Pedro Paulo do Nascimento, 28, diz que o valor da parcela de amortização está colocando em risco o sonho de uma segunda formação. Em 2018, recém-graduado em fisioterapia, teve a oportunidade de ir para Rosário, na Argentina, onde começou o curso de medicina.

“Como estou em Mossoró [RN] por conta da pandemia, minha mãe consegue pagar a parcela para mim, mas minha luta é para suspender algumas parcelas ou repactuar o valor, pois a parcela é R$ 130 maior que previsto quando fechei o contrato”, diz.

Sem renegociação, talvez Nascimento precise voltar definitivamente para o Brasil. “Coloca em risco continuar o curso porque o Fies é 50% do meu custo de vida na Argentina”, afirma.

“Não quero deixar de pagar, mas queria que fosse mais compatível com minhas condições. Estou me sentindo sufocado. É uma dívida de mais de quase 15 anos.“

Para muitos devedores de Fies há ainda um pesadelo adicional: os fiadores. Ter alguém que possa ser responsabilizado em caso de dívida favorece a aprovação do contrato. Para quem não consegue pagar, aumenta a pressão.

“Cheguei a pedir dinheiro emprestado para pagar porque não posso deixar meu fiador na mão”, diz Paloma. “Minha fiadora é uma pessoa da minha família, uma viúva aposentada. Se eu atrasar meu pagamento, bloqueiam o benefício dela”, conta Pedro.

Pesadelo

Gabriela, de Belo Horizonte, carregou o irmão para dentro do pesadelo. “Em janeiro [do ano passado], quando a cobrança começou, eu vinha fazendo freelas, e paguei. Em fevereiro, já não tive dinheiro. Em março, veio a pandemia e aí fiquei totalmente sem dinheiro. Até começar a suspensão começar a valer, fiquei sem pagar, e ficamos os dois com o nome sujo."

Entre os devedores de Fies há grande expectativa quanto à possibilidade de uma nova suspensão de pagamento ser aprovada. Um projeto de lei chegou a ser aprovado no Senado, mas não foi colocado em votação na Câmara. A proposta previa que a pausa valeria até 31 de dezembro deste ano.

Mariana Leal diz que a pausa permitiria que ela reorganizasse a vida e as contas. Aprovada em uma faculdade particular em Rio Grande (RS) em 2014, ela precisou interromper o curso depois que a mãe foi diagnosticada com uma doença grave. De volta a Pelotas (RS), vive hoje as consequências da dívida com o programa –cartão de crédito bloqueado e saldo negativo de R$ 1.000.

“Até junho consegui manter, mas depois foi impossível. O custo de vida está muito alto e estou com dificuldade de manter o básico que seria alimentação, moradia, água e luz hoje”, diz. “Eu quero pagar, mas não consigo nem um refinanciamento.”

Como a Folha mostrou em reportagem publicada em dezembro, o número de novos contratos fechados em 2020 por meio do Fies foi o menor desde 2009. Das 100 mil vagas anunciadas, 47 mil foram ocupadas por estudantes com o financiamento.

Mudança de regras

O encolhimento do programa, porém, não começou sob o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sólon, da associação das mantenedoras, diz que a mudança de regras feita em 2015 já tinha alterado o perfil do programa, afastando estudantes de baixíssima renda. Desde essa época, os estudantes não conseguem financiar 100% das mensalidade.

Quando se olha para o número de matrículas em instituições de ensino superior, as restrições ao financiamento se tonam ainda mais problemáticas.

Segundo o Censo da Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), 6,5 milhões de alunos foram matriculados em universidades, faculdades e centros universitários privados em 2019. Na rede pública foram 2 milhões.

"A educação é um direito de todos e um obrigação do estado, mas, na prática, ela é majoritariamente paga no Brasil. Quem entra em universidade públicas são os estudantes das classes A e B. Para os das classes C, D e E sobram o Prouni [Programa Universidade para Todos, que concede bolsas a estudantes de famílias com renda de até um salário mínimo per capita e com bom desempenho no Enem], o Fies e, para quem consegue, pagar mensalidade", diz Sólon Caldas, da associação das mantenedoras.

Procurados, Ministério da Educação e FNDE não comentaram a situação dos inadimplentes.

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