Artigo

Entreouvido no Alvorada

Luiz Thadeu Nunes e Silva *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15

Noite de 06 de setembro em Brasília.

-Jair, vem dormir, deixa esse Twitter, amanhã você terá um dia puxado.

-Já vou, Michele, estou empolgando meu povo, tenho que deixá-los motivados.

-Cuidado com o que você vai falar amanhã, sei que é difícil você se controlar. Quando estás no palanque, pior ainda, mas tenta controla tua língua. Tenha responsabilidade, tenho medo que perca o cargo por causa de tua língua.

-Vai dormir! Não me amola, pô!

O primeiro casal apagou a luz e dormiu.

Jair acordou mais cedo que Michele, tomou café com pão e leite condensado. Vestiu terno escuro, gravata verde e amarela, colocou a faixa presidencial.

No palanque, em Brasília, subiu os decibéis em ataques ao STF, soltou o verbo contra desafetos. Berrou animando a plateia. Era o Bolsonaro de sempre. Diante de um mar de gente, se empolgou.

Terminado o discurso, pegou o helicóptero, sobrevoou a Esplanada dos Ministérios, sorriu satisfeito com os seguidores, ops, adoradores. Sua igrejinha fiel, não faltara à sua convocação. Veio gente de todo o Brasil, para ouvir o líder. Voou de Brasília para São Paulo, onde uma multidão muito maior, obedientemente bovina, debaixo de sol inclemente e calor de rachar, o aguardava. Jair sobrevoou aquele latifúndio canarinho, feliz com seu poder de aglomerar pessoas, em plena pandemia, como se não houvesse amanhã. Na Av. Paulista, foi ovacionado. Uma coreografia sob medi da para sua performance. Começou falando de Deus, um discurso messiânico, mas logo resvalou para uma série de impropérios contras os homens das lei. Chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”, disse que ele tinha que ser enquadrado ou pediria para sair. Verborrágico, saltou a língua, em um discurso inflamado, contra o careca que pode lhe fazer perder o poder. A plateia em delírio, quase orgástico, aplaudia. A cada grito de mito, mais colérico ficava Jair.

De volta ao Palácio da Alvorada:

-Satisfeito com teu dia? Perguntou Michele.

-Claro, fui lá dei meu recado, fui ovacionado. Tenho fotos e vídeos para postar.

-Fiquei preocupada com sua empolgação, acho que vc saiu das quatro linhas.

-Estão falando que transformastes o Dia da Independência no Dia da desobediência. -A mídia não gosta de mim, responde Jair.

Jair fala baixo ao celular, para não levar mais bronca da mulher.

Consulta assessores, aumentando as preocupações, as reações foram péssimas.

-Vou só te dizer: se nós sairmos deste palácio, perder essas mordomias, por causa de tua língua, não te perdoo. D. Olinda, devia ter colocado ovo quente em tua língua.

-Você vive chamando o Lula de despreparado, mas ele e a Marisa viveram nesse palácio por oito anos. Jair calado, olha para o celular, e as notícias só pioram. Sai dos aposentos, vai para o gramado, ao celular, modulando a voz:

-Boa noite, desculpe lhe ligar agora, estou precisando de ajuda, Presidente Temer.

-Boa noite, presidente Bolsonaro, no que posso ser útil? No que puder, ajudar-lhe-ei.

-Você poderia vir aqui amanhã? Vou mandar um avião para lhe apanhar.

-Claro, presidente, estou à sua disposição.

-Obrigado, presidente Temer.

Jair voltou para os aposentos, Michele acordada, ainda assistia a TV.

-Michele, Pô! Vai dormir. Sei o que estou fazendo, quem é o presidente do Brasil?

Deitaram, apagaram a luz, viraram de lado, Michele dormiu. Jair, insone, levantou, à espera do missivista Michel Temer. Calado, o língua de trapo viu o sol nascer.



* Eng. Agrônomo, Palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes


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