Curiosidades

Influências de Bocage na literatura brasileira *

Fernando Braga/ Especial para O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15
Estátua de Bocage, semelhante à de Gonçalves Dias
Estátua de Bocage, semelhante à de Gonçalves Dias (estátua de bocage)

Diz-nos à Doutora Elza Paxeco, no seu belo ensaio ‘Alguns aspectos da Poesia de Bocage’, publicado pela Revista da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, Tomo V, nºs 1 e 2, Lisboa, 1938, “que Olavo Bilac, o príncipe dos poetas parnasianos do Brasil, numa conferência de 1917, emite uma opinião, já estabelecida há cerca de meio século pelos Castilhos, exaltando em Bocage o máximo cinzelador da métrica portuguesa”, a descrever-lhe os métodos artísticos em sua habituada felicidade.

Quis o destino entrelaçar-nos; eu, em estando aqui hoje, nesta noite mais que mirífica e encantadora, a trazer meus apontamentos sobre o nosso Manuel Maria Barbosa du Bocage, escritos há tempos, pela orientação lusônia e espiritual de meu pai, que daqui deste querido Portugal saiu em 1928, levando consigo os seis tomos das ‘Rimas’, para presenteá-los, um dia, à minha curiosidade de escritor em formação, lá longe, no peitoril do Atlântico mundo, na Ilha de São Luis, capital do Estado do Maranhão, onde nasci, e também onde nasceu a Dra. Elza Paxeco, quando seu pai, o ilustre setubalense, Dr. Fran Paxeco, ali exercia as funções de Cônsul de Portugal, a deixar legado àquelas terras, por força de seu trabalho e inteligência, juntamente com outros abnegados, a Faculdade de Direito do Maranhão, hoje integrada à Universidade Federal, e mais, a Academia Maranhense de Letras e a Associação Comercial do Maranhão, sendo reverenciado ali, até hoje, onde seu nome é dado ao Largo do Comércio de São Luis; sua filha, a Dra. Elza Paxeco, a primeira mulher a doutorar-se pela Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, de cujo trabalho retirei algumas linhas deste pronunciamento, é filha, portanto, de Fran Paxeco, e da Sra. Isabel Eugênia de Almeida Fernandes Paxeco, vindo a ser esposa, mais tarde, do Professor José Pedro Machado, arabista e filólogo português, de cuja união nasceram Maria Helena, João Manoel e Maria Rosa, esta, a Dra. Rosa Pacheco Machado, querida amiga, de quem sou recepiendário, com muita honra, neste evento, a quem procurei de imediato no aconchego de sua morada em Caldas da Rainha, assim que desembarquei, juntamente com o Nando, meu filho, no aeroporto de Lisboa, ávido em vê-la para trocarmos ideias, não só sobre o lançamento do livro, evidentemente, mas sobre as saudades de Portugal e os cantares do Maranhão...

Pois bem, depois dessas necessárias considerações e querenças benfazejas, a Dra. Elza Paxeco, finaliza, nesta minha pontuação, em dizendo que “Antônio Feliciano de Castilho, além dos elogios que concede a Bocage, diz no capítulo VIII, do seu ‘Tratado de Metrificação Portuguesa’ que os versos de Filinto desagradam e martirizam a qualquer ouvido, até mesmo sem ser dos melindrosos; os de Camões, comumente satisfazem; os de Bocage encantam; a estes, se alguma coisa houvesse de repreender seria a sua mesma perfeição excessivamente constante.”

Cremos que Castilho fora um tanto impiedoso nessa colocação, vez que foi o velho Filinto Elísio que saudou o estro do nosso gênio de Setúbal na hora da morte!...

E os ventos brasileiros sopram sobre o destino de Manuel Maria... Ao falarmos há pouco sobre destinação, e agora a trazer a influência de Manuel Maria na literatura brasileira, nos deparamos com um acontecimento, digno de se dizer, que nada acontece por acaso, desde que haja, para tanto, um nexo causal. E este, senhores, é de que seu avô, um normando chamado Gil Le Doux Du Bocage, naturalizado, entrou para a Marinha Portuguesa em 1704, combatendo no Mediterrâneo contra os barbarescos, e no Brasil, contra os franceses, na invasão de Duguay-Trouin, no Rio de Janeiro, em 1711, tendo sido, por esses feitos, promovido em 1717, ao posto de Vice-Almirante.

O professor Elmano Cardin em suas ‘Evocações da vida e obra de Bocage’ é quem nos conta esse outro fato pouco conhecido por muitos... “Bocage, o valente normando, teve assegurado em elogios a sua carreira de marinheiro em Portugal. Por certo, ao escolher a vida do mar, tinha o poeta, na herança, as aventuras do avô na Baía de Guanabara, e quando, rumo à Índia, tocou no Rio de Janeiro, deslumbrando-se com a terra que sua imaginação já conhecia... Descobriu o historiador Mello Moraes que Bocage esteve hospedado em uma casa na Rua das Violas, hoje Rua Marechal Floriano, no centro da Cidade Maravilhosa.

O poeta brasileiro que traz a métrica no coração, a poesia na alma e um alexandrino no nome, não poderia ser outro, senão Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, o poeta das ‘Naus Portuguesas em Sagres’ e dos bandeirantes no ‘Caçador de Esmeraldas’, encantou nos trinta e cinco sonetos de sua ‘Via Láctea’, o seu motivo maior, o amor sensual, vivenciado numa fugaz exaltação. Vaza-os em estilo neoclássicos, bem próximos de Bocage, e mais raramente de Camões; diz-nos, o professor Alfredo Bósi, lente de Literatura na Universidade de São Paulo.

E o poeta carioca, Olavo Bilac, discípulo ardoroso do estro apaixonante de Bocage, com a mesma intensidade do amor deste por Camões, assim canta ao querido mestre: ‘A Bocage’: “Tu, que no pago impuro das orgias/ Mergulhavas ansioso e descontente,/E, quando à tona vinhas de repente,/ Cheias as mãos de pérolas trazias;/ Tu, que de amor e pelo amor vivias,/ E que, como de límpida nascente,/ Dos lábios e dos olhos a torrente/ Dos versos e das lágrimas vertias;/ Mestre querido! Viverás enquanto/ Houver quem pulse o mágico instrumento, / E preze a língua que prezaste tanto;/ E enquanto houver num ponto do Universo/ Quem ame e sofra, e amor e sofrimento/ Saiba, chorando, traduzir no verso.”

Olavo Bilac é hoje frequentemente citado nas referências a Bocage, porque ninguém melhor elevou ao poeta o amor de uma admiração que o levaria a proclamá-lo seu mestre e o inculcava como modelo. O grande poeta brasileiro o elevaria à glória que merecia, arrancando-o, revoltado, dos baixios da popularidade repulsiva. Olavo Bilac reclamava, ainda, a reabilitação do famoso lírico que compôs tantos sonetos e idílios, e tantas alegorias, e tantas canções que honram a nossa raça; clama pela urgente reabilitação do grande arquiteto da expressão verbal, o admirável artista da palavra, o inexcedível metrificador que foi o desventurado Manuel Maria.

O poeta fluminense Álvarez de Azevedo, da segunda e estoica fase dos românticos brasileiros, escreveu, em 1850, aos vinte anos de idade um ensaio intitulado ‘Literatura e Civilização em Portugal’, onde diz entre muitas coisas “que Camões na fase heroica e Bocage na fase negra, para dividir assim em dois períodos a história literária portuguesa, que Bocage foi a figura mais representativa, a única realmente grande, da fase negra que se processou no tremedal das ruas sujas da Lisboa do século XVIII”... O que importa acontecer nesse trabalho do jovem poeta de ‘A Lira dos Vinte Anos’ é que a obra poética de Bocage, pelo reconhecimento de seu gênio e pela influência por ele exercida nas letras lusas e, sobretudo pelo influxo do talento contagiante de Bocage sobre ele mesmo, Alvarez de Azevedo, que deixou em seu universo léxico um legado riquíssimo e imagístico de metáforas bocageanas, no mais alto estilo de um poeta que foi o maior sonetista do século XVIII, não só português, mas de toda a Península Ibérica.

E as confissões de influência são muitas. Até o nosso Gonçalves Dias, ‘O Poeta da Raça’, chegou a sair do seu aconchego de romântico indianista, também ávido de aplausos e cioso de paixões, para receber de Elmano Sadino, influência na sátira que imprimiu, principalmente quando o poeta da ‘Canção do Exílio’ enaltece em um soneto digno do talento de ambos, uma evocação à bela Anarda, uma das Gertrúrias de Manuel Maria. Sobre esse fato, Lúcia Miguel Pereira, a maior biógrafa do poeta maranhense, comenta: “O cinismo, nesse caráter puro, nesse homem de vida digníssima, só se revelou em questões femininas. Nessas oscilou entre o romantismo etéreo: é um realismo que não o contentava, que o amesquinhava aos próprios olhos, mas com o qual ia enganando o seu isolamento afetivo... Lúcia Miguel Pereira deixou escondida a frustração de Gonçalves Dias pelo amor de Ana Amélia, que lhe foi arrancado pelos preconceitos familiares, assim como Elmano, viu Gertrúria nos braços d’outro amante, senão o seu irmão, o também poeta e jurisconsulto Gil du Bocage, como diz L.A. Rebello da Silva, um dos seus mais antigos e autênticos biógrafos.

Até nas estátuas dos dois poetas, de Bocage e de Gonçalves Dias, há as mãos do destino... Ambas foram feitas com o mesmo material, no mesmo estilo, na mesma oficina pelo mesmo artista, o escultor Pedro Carlos Quádrios dos Reis, que soube, naturalmente sob o pálio Divino, dar às duas peças as suas respectivas grandezas...

E as similitudes crescem. Assim como o Brasil, por intermédio da Academia Brasileira de Letras, ofereceu a Setúbal o busto do nosso grande Olavo Bilac, Portugal retribuiu ao Brasil, com o busto de Bocage, inaugurado, na Rua Fernando Ferrari, em Botafogo, no Rio de Janeiro, por ocasião do centenário de nascimento do poeta.

Por fim, consigno no ‘clamor da hora presente’, um fato talvez não muito conhecido. Na pequena biblioteca de Bocage, após sua morte, foi encontrado um exemplar do ‘Caramuru’, romance histórico em versos, que revivem, à custa dos hábitos nativos, as intenções apologéticas do Frei Santa Rita Durão. O maior sonho literário de Manuel Maria Barbosa du Bocage era escrever um poema épico sobre o descobrimento do Brasil. Esse exemplar do ‘Caramuru’ estava apostilado por Bocage em forma de cantiga, indício de que Elmano se preparava para escrever o planejado poema, que teria sido, por certo, a sua maior criação poética, a qual, ao lado de ‘Os Lusíadas’ é a obra que até hoje falta à glória dos descobrimentos.

“Feliz foi meu encontro com Bocage”, como diz o professor Raymond Cantel, ‘Diretor de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne Nouvelle’, de quem me fiz amigo, infelizmente já falecido, o qual me dera a honra de assinar sua apresentação no meu ensaio ‘Elmano, o injustiçado cantor de Inês’, o qual, hoje, aqui, fora reapresentado pela Dra. Rosa Pacheco Machado, essa amiga querida que juntamente com o incansável intelectual António Cunha Bento e os confrades da ‘Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão – LASA’, que me proporcionaram essa tão grande alegria, porque “esta é a glória que fica, eleva a honra e consola, segundo a sentença de Machado de Assis, como se ratificasse os sentimentos do próprio Elmano, o injustiçado cantor de Inês quando disse que “das almas boas a nobreza é esta.”

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Nota: Esta foi minha homenagem a Manuel Maria Barbosa du Bocage [Setúbal, 15 de setembro de 1765 – Lisboa, 21 de dezembro de 1805], que com apenas 39 anos e três meses de idade consagrou-se um dos maiores líricos portugueses de todos os tempos e o maior sonetista da Península Ibérica do século XVIII. Por isso, e outros sentimentos, cumpre-me aqui publicar as breves palavras que disse sobre a ‘influência de Bocage na literatura brasileira’, à plateia que com paciência me ouviu, na cidade de Setúbal, Portugal, no ‘Café Ritália e Bocage’, na Rua Marquesa do Faial, 10, às 17 horas do dia 10 de setembro de 2014, por ocasião dos lançamentos dos meus livros ‘Elmano, o injustiçado cantor de Inês [ensaio sobre o poeta Bocage]; e ‘Magma’ [poemas].

Ilustrações: [1] Estátua de Manuel Maria Barbosa du Bocage, na Praça do Sepal, em Setúbal, feita do mesmo material, no mesmo estilo, na mesma oficina e pelo mesmo escultor, Pedro Carlos Quádrios dos Reis, que fez a do poeta António Gonçalves Dias, erigida na Praça do mesmo nome, ou Largo dos Amores, em São Luis do Maranhão, Brasil. [2].

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