Artigo

A alma das coisas

Antônio Augusto Ribeiro Brandão *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15

“Todas as coisas estão cheias de deuses”

Tales de Mileto (séculos VI – VII a.C.), matemático e filósofo grego.



Outro dia, uma amiga e ilustre conterrânea, de escrita fácil e de grande inspiração, escreveu sobre seus sentimentos em relação ao violão de estimação que “embalou” os sonhos da juventude. Fiquei pensando: e o violão dessa amiga, quais teriam sido os seus reclamos sobre os desprezos eventualmente sofridos?

Se for verdade que as coisas têm alma, devem ter sentimentos. Lembrei-me então dos tempos passados, de um programa da Rádio Nacional, a mais ouvida na Caxias daquela época.

Falava de um violão deixado no seu canto, esquecido, que dizia mais ou menos assim:

Sinto saudades do momento em que fui comprado pela primeira vez. Havia ficado exposto, na vitrine da loja de instrumentos musicais, vendo os meus parentes mais próximos, de sonoridade mais nobre – os violinos sempre foram considerados assim - serem levados pelos seus primeiros donos. Vocês não podem imaginar, mas sofri muito durante todo o processo em que fui construído, com aquele velho artesão a dispensar, sempre, mais atenção e esmero no trato àquele violino.

Na exposição da loja, dentre todos os violões, fui o último a ser escolhido. Quando fui levado afinal, sem saber quem seria meu dono(a), mesmo assim exultei de alegria. É que a pessoa que me levou não parecia entender muito de música: não perguntava muito ao proprietário da loja sobre os instrumentos ali expostos nem sobre partituras ou coisas do gênero. Deveria estar desejando apenas dar um presente a alguém.

“Mais tarde minhas expectativas se confirmaram. Fui dado de presente a uma moça, esta sim, pela maneira radiante com que me acolheu em seus braços, não somente devia entender de música como gostar de violão. Que felicidade! Afinal iria desfrutar do aconchego dos braços daquela jovem.

E foi assim durante muitos anos, ela abraçando-se a mim e eu sentindo o prazer desse carinho. Mas, como a felicidade dura pouco, breve apareceu um concorrente; devem estar pensando que esse tal concorrente era um outro violão, novo e mais moderno, importado, digno de aposentar um produto nacional. Errado.

Acreditem, foi uma pessoa – todas pensam que têm mais alma e sentimentos do que nós, as coisas -, um rapaz da mesma cidade da minha dona, filho de família ilustre e tradicional, que começou a roubar seu coração e, à medida em que o tempo decorria, mais havia menos tempo para mim.

As músicas não precisavam ser mais tocadas, bastavam ser ouvidas. De minha parte, ia ficando no meu canto, esquecido, sofrendo a perda daquela grande amizade, sem rumores nem ressentimentos.

Agora, não me peçam para dizer o que finalmente aconteceu comigo: só sei que ela acabou casando com o tal rapaz, meu definitivo concorrente, e que ainda hoje vivem felizes e contentes, sem lembranças nem remorsos daquele primeiro instrumento musical.

* Economista. Membro Honorário da ALL e da ACL, e Membro Fundador da AMCJSP. Filiado à IWA e ao Movimento ELOS Literários

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