Artigo

"Não verás país nenhum"

José Luiz Almeida *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16

Não sei se o que vou dizer aqui só ocorre no Brasil. Mas tudo leva a crer que sim. Se não for “privilégio” brasileiro o que vou registrar, posso dizer, ao menos, que algumas das nossas atitudes, em muitas circunstâncias, nos colocam em destaque, negativamente, aos olhos do mundo.

Para desenvolver essas reflexões, convém trazer a lume uma frase lapidar de Tim Maia, que, irreverente, traduziu, ao seu modo, a sua visão do Brasil: “Este país não pode dar certo. Aqui, prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”.

Não menos irreverente, Nelson Rodrigues, refletindo, também, sobre a peculiaridade do brasileiro, disse, certa feita, que por aqui “vaia-se até minuto de silêncio”.

Assim é o Brasil na visão desses dois extraordinários brasileiros; mas não só deles, já que o mundo civilizado tem sido premiado, todos os dias, com as bizarrices/excentricidades/extravagâncias aqui construídas, fruto da ação/inação de alguns bizarros nativos.

Diante dessa constatação, importa indagar em que lugar do mundo, mesmo o mais isolado, desinformado e inculto, alguém deixa de se vacinar contra o Sars-Cov-2, com medo de se transformar num membro da família Alligatoridae?

Prossigo indagando, ademais, com a mesma inquietação, em qual lugar do mundo as pessoas se obrigam a levar uma testemunha para registrar um ato de vacinação – como eu fiz - com receio de ser ludibriado, ante a constatação de vários episódios de inoculação de ar ao invés de imunizante?

Em meados de 1904, vale o registro histórico, a reafirmar a nossa esquisitice, não foi diferente com a vacina contra a varíola, recusada pelas camadas mais populares, que temiam ficar com a feição bovina, já que o líquido utilizado no insumo era de pústulas de vacas.

Dia 5 de julho, pela manhã, recebi minha segunda dose de imunizante. Ao meu lado, um cidadão tremia como vara verde, como medo da picada da agulha, segundo me confidenciou, colocando-se, assim, diante de um dilema que não era meu: não podia deixar de olhar para a seringa, com receio de ser ludibriado, mas não tinha coragem de fazê-lo, em face do pânico que lhe atormentava.

Diante do impasse, emprestei a minha contribuição. Atentei para a seringa cheia e a vi ser esvaziada no braço trêmulo do desconhecido, para, depois, tranquilizá-lo sobre a imunização.

Ante o narrado, convém consignar, agora, em arremate, que só mesmo num país prenhe de coisas estranhas, onde tudo soa esquisito, para um cronista buscar inspiração, não no corriqueiro, mas no inusitado, que vai do jacaré que atemoriza o incauto, até a necessidade de um testemunho, para dissipar as dúvidas de quem opta pela imunização contra a Covid-19.

Para encerrar, e por oportuno, sugiro, em face da sua atualidade, a leitura do romance distópico “Não Verás País Nenhum”, de Ygnácio de Loyola Brandão, escrito nos anos 80, mas marcadamente atual, visto que muito do seu conteúdo traduz o Brasil dos nossos dias.

Para lembrar, na distopia, Souza, professor de História, afastado de suas funções pela lei de segurança, conta aquilo que poderá vir a ser o nosso país em pleno caos que o próprio ser humano criou com o passar do tempo: escassez de alimentos e água; proibição de livre circulação da população; opressão; autoritarismo; falsificação da história; o desastre ecológico ameaçando a sobrevivência; a violência direta e indiretamente exercida.

De tudo o que expus, é de rigor concluir, como o grande escritor, de cuja obra colho de empréstimo o título dessa crônica: “Não verás país nenhum”.

É isso.

* Desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão

E-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

blog: joseluiz.almeida

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