Artigo

Outra forma de ver a arte

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16

Há alguns anos, mesmo antes da pandemia, estávamos relativamente acostumados a fazer visitas virtuais ou mesmo a ler obras clássicas pela rede. Os mais importantes museus do mundo e as grandes bibliotecas têm disponibilizado parte de seu acervo em formato digital, para dar acesso às pessoas em todo o mundo. Mas um fenômeno novo, precipitado pelas medidas necessárias de distanciamento social, em virtude da Covid-19, desencadeou uma tempestade de acessos possíveis - em proporções inimagináveis - a centros de arte, cinemas, museus e bibliotecas.

A peste, como em outros tempos, provocou reações psicológicas, comportamentais e relacionais, consequências que nos darão muitos anos de pesquisa e análise. Afinal, ainda temos que lidar com uma alteração definitiva na sociedade, à qual ainda não conseguimos nos adaptar, porque vivemos o diferente como se fosse transitório.

Onde a arte e a cultura ficam nisso tudo? Ainda estamos tentando encontrar uma forma segura de consumir arte de forma presencial, o que - creio que todos devam concordar- é insubstituível. Nada é páreo para a experiência sensória presencial. O toque físico e o olhar in loco e ao vivo são insubstituíveis.

Tive a oportunidade de, em 2014, ir aos Estados Unidos participar de um evento científico, na Filadélfia. Nos intervalos do evento, pus-me a conhecer os monumentos da cidade. Estive bem próximo de um quadro que retratava a sagrada família numa das catedrais da cidade. Uma experiência espetacular aquela gravura me proporcionou, banhada pela luz dos vitrais que faz refletir novas cores, à medida que o olhar do espectador se reposiciona. Os parques da cidade, cujas árvores no outono revelam diversos matizes em suas folhas, são um espetáculo para a alma.

Lembrei que, no Museu do Prado, em Madri, está instalada a monumental Guernica (3,49 m de altura por 7,76 m de largura), pintada em 1937, em Paris, por Pablo Picasso. O nome da obra é o mesmo da cidade basca bombardeada pelos alemães e italianos a pedido dos nacionalistas espanhóis liderados por Francisco Franco. A um só tempo temos história, emoção, reflexão e, nisso tudo, somos como que arrastados para um confronto com a desconcertante capacidade humana de produzir dor e sentido, diante de valores que relativizam completamente a autonomia da vida humana.

E para exaltar a cultura e a arte de nossa terra - afinal, estamos em junho - como proporcionar virtualmente o calor, as cores, o bailado, a sensação de alegria que paira no ar com a apresentação dos diversos grupos de bumba-meu-boi? Matracas e pandeirões tocados a distância não conseguem, por mais que se esforcem, despertar em nós a mesma alegria e calor da proximidade da fogueira.

Todas essas lembranças agora são ressignificadas. A pandemia criou uma oportunidade de reavaliar nossos sistemas econômicos, políticos, de saúde e até nossa forma de viver. Com isso, as casas de arte foram afetadas, mas o que a arte pode nos dar, enquanto reaprendemos a viver nessa nova era?

É da natureza da arte criar e reinventar. Imaginação, reinterpretação, perspectiva, prazer, encantamento, espanto. A arte está cheia de impressões que favorecem o (re)viver das experiências. É nossa maior prática de reinterpretação da existência. É novo ponto de partida para viver de novo o resolvido e o mal resolvido. Cada qual, em sua forma particular, contribui para o significado de nossas vidas cotidianas. Traz elementos que auxiliam no processamento dos sentidos tanto individualmente, quanto em grupo.

A arte, aliás, sempre cumpriu um papel de comunicar o indizível. Melhor dizendo, de expressar as coisas que desafiam nossos limites de dizer. E os poetas ocupam um lugar especial nesse campo de exercício do transcendente pois, com tão grande desafio, lembrei de Drummond e sua poesia “No meio do caminho”. Que pedra se interpõe para a superação entre nós e a vida? O poeta colocou uma pedra, metáfora do desafio da criatividade humana.

Agora o coronavírus é essa pedra em que tropeçamos, enquanto - em isolamento - vamos aprendendo que o mundo não pode mais ser este que até aqui temos vivido. E, nessa pedra que muito nos tem ferido com soterramentos diários, vamos lapidando outra forma de viver para outras possibilidades de estarmos vivos, para não termos que, segundo Albert Camus, em O Estrangeiro, que enfrentar eternamente o castigo absurdo de Sísifo.

Natalino Salgado Filho

Médico nefrologista, reitor da UFMA, titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina

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