85 anos

Um bilhete para Arlete Nogueira da Cruz, escrito em 1969

Fernando Braga* Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16

Fernando Braga*
Especial para o Alternativo


Acontece que as lides atormentadas desta dimensão de pressa nos transportam a cosmos distantes e diferentes, quando saímos a todo vapor em busca da combustão para a vida. Se voltarmos vazios ou diferentes, como sempre acontece, resta-nos um dedo para uma prosa ou um fôlego para um poema, para um poema quase assim como nos diz Nauro Machado que é preferível “nós nos suicidamos para resistir às fúrias do inferno”.

Li as tuas “Cartas”. Todas elas me enterneceram bastante; todas elas me foram transbordantes de um sentimento ímpar; todas elas estão cheias de soluços, cantos e preces como as entendeu Fernando Moreira; todas elas de uma beleza literária superior, como sentenciou José Chagas; toas elas de uma doce tranquilidade e de um manejo técnico aprimorado na arte de bem transmitir emoções, t’as digo eu!...

Acontece, minha querida Arlete que uma ficou-me presa como um laivo de um gemido ou como um grito à beira de um abismo, foi a que endereçaste aos poetas... Foi essa que me fez, agora, sanar minha dívida contigo, em pagar, pelo menos, a parte que em cheio me tocou.

Dizes, como só tu poderias dizer que em jogo tão perfeito, arrancando do mais escondido e do mais sentido lirismo - que a senhora tua mãe – não é apenas a responsável pelo conjunto magro que te veste a alma – é mais, é tua companheira de cálcio e sal -. Afirmas que nós outros, cá de fora, bebemos e falamos cada um por si... Não Arlete, o teu espírito está conosco a compartilhar em tudo em nosso todo. Não ficas em casa apenas, como pensas, guardada, enquanto os nossos soluços inventam feriados; a tua casa guarda apenas os teus pertences, porque tua alma vagueia com a nossa, cá fora, em escuras noites ou em estrelas altas...

Nos nossos bolsos levamos cigarros e em nossas camisas nódoas de vinho e aquele cheiro de orgias e noites passadas e o encantamento das vozes do silêncio, porque quando este há, bem haja o poeta e o inverno que lhe ensopa a alma...

Tu és e continuas nossa irmãzinha a construir conosco, os poetas peregrinos de ruas e botecos, como diz Lago Burnett, aquela figura “magra, tímida, hipersensível, flutuando entre sobrados de azulejos com beirais de porcelana na serena paz da Ilha de São Luis”.

Eu vou mais longe a afirmar que tu és a nossa Arlete - a nossa companhia espiritual e benfazeja a viver conosco pelas algaravias das nossas andanças pela nossa Cidade de amor e pela nossa Ilha da Caridade, a nos livrar, como um anjo da Anunciação e da boa querença, dos perigos que rodeiam as crianças, os loucos, os bêbados e os poetas.

Com um grande abraço, Fernando Braga, 30 de maio de 1969.


*Fernando Braga é escritor

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