Artigo

Sombras na parede

Marcelo Coutinho *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16

Algo mais chama atenção nas discussões sobre o BBB nas redes sociais: o Brasil se diz amistoso e um só povo, mas revelou uma face de profunda fragmentação, com latente ódio, preconceito e mágoa. Várias clivagens apareceram, inclusive entre nortistas e sulistas. Os comentários eram quase sempre raivosos e rancorosos de brasileiros contra brasileiros. Afinal, por onde anda a cordialidade do país tão propagada desde Sérgio Buarque de Holanda?

A impressão é que a nossa coesão social foi um mito. A história de que somos “de boa”, para usar uma linguagem jovial, tem fundo de miragem ou peça de propaganda que inventaram para encobrir um manancial de rivalidades que relativizam cotidianamente a unidade nacional. Falamos todos a mesma língua num fenômeno quase único. Mas a usamos para nos ofender ou diminuir mutuamente, numa miséria de civilidade e morte da nossa própria cultura.

A autofagia cultural brasileira é de longa data. Os regimes ditatoriais mantiveram sufocadas em inúmeras épocas muitas diferenças herdadas da colonização. E a democracia agora está anunciando, a exemplo do se viu no BBB, uma lama de sentimentos contrários, numa espécie de antagonismo envergonhado em que um constrange o outro, ora com ataques em bando ora numa postura professoral dona da verdade.

O Brasil faz bullying de si mesmo como eternos adolescentes na escola, causando danos físicos e psicológicos que nos aprisionam juntos a um vácuo civilizatório. Somos o país mais violento do mundo, é o que dizem as estatísticas de homicídio. E isso não tem nada a ver com politicamente correto. Que nação pacífica é essa que mata friamente tanto assim? O brasileiro é mau consigo mesmo.

Não é novidade que desconfiamos uns dos outros no Brasil. Porém, agora descobrimos que além de suspeitar, nós nos odiamos, ou pelo menos mostramos ser capazes de nos entregar a esse sentimento em torcidas irascíveis em torno de personalidades alavancadas de um dia para o outro apenas por mostrarem suas vísceras espirituais, muitas vezes com o que há de pior no ser humano, como a inveja e a cobiça.

A paixão nos tomou. A princípio, deveríamos ser valentões contra males que nos afligem a todos antes de nos dividirmos em lutas fratricidas que nem sabemos direito quando começou e por que devem continuar. Agressões e intimidações repetitivas de ambos os lados, sobretudo, covardemente quando um está sozinho, não vão nos levar a lugar nenhum.

Até mesmo as legítimas demandas das minorias podem acabar sendo confundidas com radicalismo suicida do tipo que decide abolir homens e mulheres da linguagem para adotar o conceito de pessoas com próstata ou com útero. O único lado bom nessa história toda, é que os telespectadores pelo menos demonstram afeto ao formarem fileiras de fãs. Qualquer demonstração de amor vale a pena num mundo cada vez mais nem aí. No entanto, a militância sem bom senso empurra a todos para polarizações chatas quando não perigosas.

Mais do que apenas grupos se organizando na legítima defesa dos seus interesses, vejo rodas de bullying sentimental deprimindo uma nação inteira em relações abusivas acusando outras relações abusivas. Por trás de cada um dos bigbrothers pairam sombras na parede. Elas não passam de sombras. Mas ainda assim nos atormentam. As pessoas não deveriam falar o que bem quisessem ofendendo as outras. Mas também não podem policiar permanentemente as demais, vigiando terceiros como se compusessem um eterno grande irmão de George Orwell. Não esqueçamos de George. Sejamos mais coração que olhos.


* Escritor, poeta e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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